Ana vem de uma família proletária. toda ela. com exceção de um tio que foi rico durante um período em que foi diretor de uma transportadora multinacional e se enganou pensando ter pulado de classe, todos os avós, tios, tias, primos, primas todos trabalhadores, todos proletários. ficar doente nem pensar. para colocar comida na mesa todos os dias era preciso trabalhar e se deixar explorar. esse o lugar de Ana e foi nesse universo em que cresceu.
assistiu quase a vida inteira a mãe acusar o pai de não ser ambicioso e esforçado o suficiente. tinham casa própria e comiam carne todos os dias durante toda sua infância e adolescência. até mesmo naquele período de inflação galopante do final da década de 1980, comiam carne. sim, na família de Ana era prioridade. para a mãe de Ana essa era uma prioridade e era a mãe quem decidia essas coisas. a mãe passara muita privação na infância. o que fazia de Ana profunda conhecedora de todas as técnicas de enganar a fome ou aquela “vontade de comer o que não tem”; de café preto engrossado com farinha de mandioca até polenta com açúcar e leite. embora faltasse carne, sobrava o básico dos cereais e leguminosas. a avó de Ana plantava para a subsistência e para pequenos escambos com vizinhos e irmãs. em todas as casas onde a avó morou, sempre manteve horta e pomar. num tempo em que não se derrubavam árvores — era considerado burrice entre os pobres.
Ana discutia muito com a mãe. foram muitas as brigas. a mãe queria a vida do irmão — o tio que foi rico por algum tempo. o pai de Ana achava meio brega ser rico, desnecessário, achava inclusive injusto ter mais do que se podia comer, usar, etc. dizia à esposa e filhos: “se eu só posso usar uma calça por vez, no máximo preciso de outra para trocar quando essa for lavar”. Ana achava que não precisava ser tão escasso assim, mas o pai nunca impusera — nem a mãe permitiria — sua “filosofia de vida” à família. Ana, o irmão e a mãe tinham roupa para trocar todo dia por até dez dias sem precisar lavar. o pai viveu a vida toda praticamente com pouco mais de duas mudas de roupa. gostava mesmo era de ganhar roupa usada. as do tio materno de Ana, aquele, rico por algum tempo…. uma vez a cada dois anos, a família do tio fazia limpeza dos armários e chegava ao menos uma caixa grande com roupas usadas para toda a família. a mãe no máximo tinha que fazer ajustes. Ana dizia não se lembrar do pai comprando roupa, e achava inclusive que ele sequer saberia onde ficavam as lojas.
nessa história aí da caixa com a limpeza dos armários da família do tio, Ana pôde usar uma sandália “melissa”, ainda no auge. em seguida foram lançadas modelos e cores novas, tal foi a “febre”, e a laranja meio ferrugem do primeiro modelo já não agradava mais as primas de Ana. talvez tenha vindo daí seu gosto pelo conforto de usar sandália com meia, mantido enquanto seus pés não inchavam tanto. agora, quase velha, ela diz que fica feio com os pés tão inchados e deixou de ser confortável.
comentava do pavor de uma reclamação reiterada da mãe: estar velha e não ter carne para comer ou querer comer algo, às vezes um simples sorvete de casquinha quando estivesse caminhando pelo centro da cidade, e não ter dinheiro para isso. muitas vezes Ana a viu chegar cabisbaixa em casa, desenxabida, se sentindo humilhada e com os gatilhos da penúria vivida na infância todos disparados. Ana ficava impaciente com a mãe e com essa sua “mania”. achava exagero dela, até… sentir ela mesma na carne como é isso do não ter, de sentir a falta pelo detalhe, de estar se aproximando da velhice sem casa própria, sem emprego fixo — embora tenha profissão e reconhecimento profissional —, sobrevivendo da solidariedade dos amigos e sem perspectiva a médio prazo de solução.
sente uma dor quase física pela humilhação da falta do básico que diz lhe “corroer a dignidade”. é um exercício duro manter a altivez e o prumo tendo que pedir dinheiro para comprar pão, arroz, feijão, leite… e se bastasse “só” a humilhação do pedir para ter, ainda, talvez, fosse suportável — diz. mas são muitos os nãos, as desconfianças de não ser esforçada o suficiente. lembra do pai ouvindo essa mesma acusação mantendo o básico para a sua família e um teto sobre suas cabeças. Ana nem isso consegue, vive de aluguel — sempre atrasado.
a mãe de Ana morreu já faz um tempo, e ela se ressente por querer pedir perdão pela impaciência — mas só por isso, alerta. não era mania, era a falta que precede o nada, o vazio, a náusea que precede a fome. não a fome momentânea que logo será saciada… a fome que corrói as forças e a dignidade. Ana vive num tempo e lugar diferente da favela do Canindé da Carolina. ela mal conhece os vizinhos, que mesmo se soubessem de sua situação não se importariam, é o mais provável.
essa náusea que precede a fome agora tem um nome novo: insegurança alimentar. e sempre que Ana comenta com alguém das suas relações da insegurança alimentar em que vivem ela e sua família, se arrepende. as reações são tão variadas… tem quem finja acreditar, e siga como se ela não tivesse dito nada. tem quem deixe transparecer a incredulidade. e tem quem inclusive argumente de que ela está enganada, distorcendo ou até exagerando — exatamente como ela pensava sobre a mãe.
Ana tem aquele olhar meio triste meio revolts de quem se sente injustiçada, no todo, pela vida, mas principalmente por quem a cerca. ela alterna entre a tristeza e depressão, e seus amigos dizem que assim ela mesma afugenta as pessoas de perto. (!)
sempre volta às lembranças da mãe que a julgava culpada por todos os infortúnios que a assolavam. um dia, enfurecida, Ana a questionou se ela (a mãe) era também culpada por todos os seus infortúnios. foi motivo de mais uma briga que entre tantas que fizeram elas se afastarem. quando sua mãe morreu foi ao enterro apenas para cumprir o ritual, para ver a mãe morta no caixão e virar aquela página.
Ana diz não entender como uma infância tão bem nutrida a fez tão sabedora da fome e suas humilhações, e sobre náuseas. também eu não entendo e nem consigo ajudá-la com isso.
junto com a humilhação e os lanhos na dignidade, a náusea que precede a fome traz também a raiva. uma das pequenas raivas reiteradas no cotidiano de Ana está justamente os dias alternarem entre não ter o que comer e em ser obrigada a cozinhar e comer algo que não queria só para não dormir de barriga vazia. ela diz chegar a sentir falta da infância emocionalmente ruim só pelo bife, pelas maçãs no lanche da manhã, pelo frango de panela dos domingos, pelos churrascos que reuniam a infinidade de tios, tias, primas e primos.
a náusea que precede a fome faz até os constrangimentos e abusos perderem peso e importância.
das muitas lições do pai, a mais presente: se é injusto ter mais do que se pode comer e usar, e Ana dentre muitos muitos muitos outros e outras não têm esse básico, é porque alguém tem muito mais do que precisaria ter.
a náusea que precede a fome não corrói a dignidade de Ana como ela sente e diz, corrói a dignidade do mundo todo. mas o mundo todo não sente essa náusea, e nem se importa com a náusea ou com a fome das Anas e Carolinas.
mas eu não tenho coragem de dizer à Ana que ela está errada ou que o que diz e sente não é exatamente assim.
nem tu teria.