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do direito à autonomia

tenho sol e ascendente em capricórnio, dizem. o comentário mais recorrente sobre minha personalidade é “só pensa em dinheiro” quando esse é o assunto. sabe o que é engraçado? sou a pessoa que menos pensa, se liga ou se importa com dinheiro. talvez o ascendente ao invés de potencializar o sol o anule, vai saber? amigues astrólogas nunca disseram isso, mas eu acho que é isso que ocorre. ou talvez minha lua em câncer seja o que mais me define, vai saber?

o que sei é que as características mais marcantes dos nascidos entre 22 de dezembro e 20 de janeiro que carrego é ser rancorosa e precisar de chão firme para estar, trilhar, ser. não é fácil ser essa que sou. juntar o não saber ganhar dinheiro nem se importar com o vil metal com o rancor e a necessidade visceral de chão desenha a contradição em si, e fode minha existência.

estou chegando aos 47 anos sem casa própria e sempre na iminência de ir morar na rua, desempregada, sem sequer conta no banco e dependendo da ajuda de amigues para sobreviver. bons, caros e raros amigues, é preciso observar e agradecer, mas que já devem estar cheios de terem que me ajudar _estou eu também cheia de precisar da ajuda deles_, e é aqui que o caldo entorna.

o capitalismo é perverso, destrói até o que deveria ser condição sine qua non para esquerdistas. meus queridos amigues sequer percebem quando atropelam meu direito à autonomia. e reproduzem os já bem gastos e conhecidos “pobre não pode ter frescura”, “cavalo dado não se olha os dentes” e quetais.

bueno, eu sou pobre e tenho frescuras. tenho problemas de estômago, alergias de pele e sofro de depressão. minha condição atual não é um mero destino de uma inata capricorniana que não sabe e não gosta de ganhar dinheiro. as opressões acumuladas somadas às minhas frescuras me arrancam as forças e minha alegria mais genuína que é trabalhar e exercer minha profissão _aquela a qual já até renunciei.

e eu posso até não saber/querer ganhar dinheiro, mas cresci multitarefas, multitalentos. sei cozinhar, sou boa em atividades manuais que requerem criatividade, tenho uma boa noção de semiótica e, dizem, escrevo razoavelmente bem para além das técnicas e do beabá do jornalismo. mas tem dias que o olho não brilha, o paladar e olfato somem e os sonhos se esgueiram pelas sombras fugindo de mim, a acidez no estômago acentua, a pele empelota e o ânimo-desejo-necessidade-vontade desaparecem.

eu sei que tenho um filho pra manter, três bocas humanas e duas caninas para alimentar, ainda tenho uma casa para cuidar e, portanto, não poderia me dar ao luxo dessas frescuras todas… mas tem dias em que nada disso importa. e os “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”, “vai à luta”, “pega esse touro pelo chifre” me oprimem e deprimem mais do que incentivam ou ajudam.

se tu é amigue meu/minha, mesmo, não me insulte perguntando “por que não faz num-sei-que-lá?”, “já tentou sei-lá-o-que?”, “fazer patatá tem dado um bom dinheiro”, “cortar a assinatura da tevê economizaria um bom dinheiro”. a intenção pode e deve ser a melhor, eu acredito, juro!, mas dói tanto ler e ouvir… não sou vagabunda, nem escorada, nem abusada ou sem noção ou gosto dessa situação vexatória de não conseguir garantir meu próprio sustento com meu trabalho. e dói mais ainda precisar verbalizar isso a quem amo.

eu já pensei e já tentei. e já repensei e já tentei de novo, mesmo sem condições para tentar nada. e de novo não deu. se existisse uma mísera possibilidade de sair dessa situação sozinha com minhas perninhas eu já teria saído.

de todas as dores que me corroem a alma, a autonomia ser uma conquista exclusiva do dinheiro é a que mais me afronta, ofende e calou _até hoje. eu deveria ter direito à autonomia junto com a vida, tanto quanto tenho direito à vida, independente de como vivo ou sobrevivo. todas as pessoas deveriam ter. porque vida sem autonomia é subvida, é não ser cidadã ou ser cidadã pela metade, é ser pessoa de segunda (terceira, quarta…) categoria.

tem bem pouca serventia bradar por um outro mundo, um novo marco nas relações ou pela substituição do parâmetro do capital pelo humano se no dia a dia reproduzimos e reforçamos as opressões do capital sobre seus desvalidos.

engraçado. nunca tinha me pensado ou dito como desvalida. mas os tais privilégios que o escalonamento das opressões me conferem não me estão sendo úteis. sou uma desvalida do capital. curso superior, computador com internet, tevê a cabo, microondas, nada disso me conferiu autonomia. até pros meus amigues queridos eu não tenho direito a escolhas enquanto não “tomar vergonha na cara e der um jeito de ganhar dinheiro”, esse objetivo tão nobre e tão significativo-significante da vida…

então, é isso. estou me causando a dor imensa de expor minhas vísceras e mazelas desse jeito para quem sabe deixar de sentir a dor monumentalmente maior de não ter minha autonomia respeitada por quem amo/me ama.

se me ajudar a sobreviver não é compatível com respeitar minha autonomia, por favor, não me ajude. há mais dignidade na morte do que viver assim.

 


A maternidade e a culpa das mulheres

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Sábado, 29/05, li num post do blog Politika etc. que os estados americanos de Alabama, Louisiana e Mississipi aprovaram leis que obrigam clínicas de aborto a fazer exames de ultrassom como forma de dissuadir mulheres a interromper a gravidez. Oklahoma passou a obrigar também que as mulheres recebam uma imagem de ultrassom com uma descrição detalhada do feto ou do embrião.
O post questiona então, qual seria a intenção dos conservadores americanos, que ao não conseguirem tornar o aborto ilegal em alguns estados, fazem de tudo para obrigar as mulheres a terem seus filhos indesejados. Quando não pela forma da lei, como essa acima citada, o fazem através da diminuição de verbas destinadas à clínicas públicas. E todos (ou quase todos) sabemos o caos que é saúde pública nos EUA. Pode até parecer piada dizer que o SUS brasileiro é um sonho para a população pobre estadunidense, mas é verdade.
O texto intitulado “Maternidade como situação, não destino” me inspirou um comentário longo. Como ando com problemas de tempo e inspiração para escrever, e há muito tempo não posto nada sobre mulheres ou feminismo, resolvi socializá-lo aqui.
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A opressão através da culpa

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A intenção dos conservadores americanos ao obrigarem as mulheres que intencionam abortar a olharem as fotos do ultrassom de seu “filho” não é para transformá-las em mães, mas para produzir culpa. Toda a opressão de gênero se baseia na culpa.
Atualmente: As crianças estão mal alimentadas sozinhas em casa em frente ao computador é porque a mãe, ao invés de estar em casa cuidando e alimentando-os direito, está trabalhando fora; Se acidentes domésticos acontecem é porque as mães se distraíram em meio às várias jornadas que cumprem paralelamente durante o dia; Se as crianças se tornam individualistas, retraídas, com problemas de relacionamento e acabam, por fim, agressivas e violentas, a culpa é da mulher que não estava atenta observando o comportamento dos filhos.
As mulheres se culpam – e são culpabilizadas! – por não terem o tempo necessário e desejado para cuidar de seus filhos. Se culpam – e são culpabilizadas! – por abandonar a carreira profissional para cuidar dos filhos quando pequenos, e vão sentir falta dessa carreira quando vier o divórcio e for preciso trabalhar para sustentar esses filhos. Se culpam – e são culpabilizadas! – pela opção de não terem filhos. E por fim se culpam – e são culpabilizadas! – até mesmo pelo prazer sexual que originou os filhos ou a gravidez indesejada.
Moral da história: A sociedade que culpa as mulheres por tudo, as deixa sem alternativa de sentir essa culpa em qualquer dos caminhos que venham a escolher. Ao mesmo tempo em que esses conservadores querem obrigar as mulheres à maternidade não dão a menor condição de seu exercício, sem que para isso tenham que se sacrificar de alguma maneira. Quer modo mais eficaz de manter alguém subjugado e dominado do que através de sua própria “consciência”?
A luta das mulheres por sua libertação ainda é longa e está muito longe do fim. Certamente está mais perto do que antes, mas muito, muito longe ainda de alcançar seu objetivo.
Simone de Beauvoir estava certíssima. Torna-se mulher, com tudo de bom e de ruim que traz consigo essa mudança de estado. Ousaria registrar junto à Simone que “Cansa ser mulher”. Carregar no corpo e na alma a sustentação de toda forma de opressão e ainda a culpa por todos os males que assolam a humanidade é cansativo e não é para qualquer um.
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