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cara de outono

folha caindo

meu pai era um mecânico por vocação. inventivo, criativo, generoso, olhar doce, jeito de gente boa. caladão, contemplativo, um leitor voraz. generoso e complacente inclusive com os ignorantes. de vez em quando hipotecava algum tempo tentando iluminar mentes obscuras, não se vangloriava se conseguia e nem reclamava se não. irônico e sarcástico como são em geral as pessoas muito inteligentes e observadoras da realidade.

na sua internação hospitalar em 2003, seus últimos dias, quando eu não estava trabalhando estava em casa com o Calvin pra minha mãe estar no hospital com ele. sobrou pro meu irmão a tarefa desses cuidados na maior parte do tempo. e acabou que só fui visitá-lo uma vez. não sabia explicar, apenas não conseguia ir. sabia que ele estava partindo e só tinha vontade de fugir.

na tarde em que fui visitá-lo finalmente, uns três ou quatro dias antes dele morrer, cheguei quando a enfermeira tentava convencê-lo a se alimentar. ele resistia. o café devia ser muito ruim mesmo para ele recusar. mas tinha também a posição, ele estava sentado na cama e respirava com muita dificuldade, as dores _diziam_ eram horrendas. ele tinha cardiomiopatia severa.

quando a enfermeira me passou a tarefa de fazê-lo comer e saiu, perguntei se ele não estava mesmo com vontade de comer, ele disse não, não insisti. fiquei um pouco em silêncio e ele me olhou com aquele olhar crítico de sempre e em um segundo deixou claro todo o seu descontentamento pela minha ausência. perguntou, sarcástico e agressivo: “veio fazer alguma matéria jornalística com doentes terminais?”

saí do quarto aos prantos, me escorando pelas paredes daquele lugar detestável. nunca mais o vi.

fazem quinze anos hoje que ele se foi, me deixando setembro para sempre com cara de outono.


Noite de João

Madrugada entre o dia 23 e 24 de junho. Foi nessa noite em 1929 que meu pai nasceu, no 6º distrito da chamada colônia de Pelotas (zona rural), Santa Silvana. Só foi registrado muitos dias depois quando o meu avô Francisco, carpinteiro descendente direto de portugueses da Ilha da Madeira, veio à cidade em agosto daquele ano.

Na noite de São João que nasceu meu pai, os vizinhos se juntaram na casa da minha família para fazer a fogueira em homenagem ao santo, costume na época. Todos queriam acompanhar o parto, bem difícil, da minha avó Maria Luiza, uma italiana que nasceu num navio em pleno Atlântico na viagem para o Brasil, mas que foi resgistrada como brasileira no desembarque.

Meu pai nasceu João em homenagem ao santo e se acostumou a acender uma fogueira todos os anos para o “seu santo”, representado por uma criança com uma cruz na mão e uma ovelha no colo. Cresci vendo ele chegar mais cedo da oficina no dia 23 – ele era mecânico e ia e voltava do trabalho pedalando -, e ia juntar lenha com os vizinhos para armar a fogueira. Deixava tudo pronto para acendê-la de madrugada. Sempre muito perfeccionista e atento a todos os detalhes, se precavia para que não acontecesse nenhum acidente. Nunca houve.

Manteve esse hábito por toda a vida. Só nos últimos três anos, já bastante doente e debilitado é que deixou de fazer a fogueira. Nunca mais as noites de São João foram iguais, assim como a minha vida também não foi a mesma desde que ele se foi em 2003.

Não consegui dizer isso a ele, e por isso tenho a necessidade de registrar agora, mas ele amenizava a minha vida. Não sabia o quanto me sentiria órfã sem ele. Sempre que ouço Noite de São João, um poema de Fernando Pessoa musicado pelo Vitor Ramil, lembro daquelas noites de fogueira no pátio da minha casa e da falta que aquele João me faz.

Deixo aqui meu presente de aniversário para o meu pai, que estaria fazendo aniversário hoje e que, assim como eu, gostava muito dessa música do Vitor.

Meu pai morreu na noite de 13 de setembro de 2003 e o 13 de setembro também virou “Noite de João” pra mim.