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cara de outono

folha caindo

meu pai era um mecânico por vocação. inventivo, criativo, generoso, olhar doce, jeito de gente boa. caladão, contemplativo, um leitor voraz. generoso e complacente inclusive com os ignorantes. de vez em quando hipotecava algum tempo tentando iluminar mentes obscuras, não se vangloriava se conseguia e nem reclamava se não. irônico e sarcástico como são em geral as pessoas muito inteligentes e observadoras da realidade.

na sua internação hospitalar em 2003, seus últimos dias, quando eu não estava trabalhando estava em casa com o Calvin pra minha mãe estar no hospital com ele. sobrou pro meu irmão a tarefa desses cuidados na maior parte do tempo. e acabou que só fui visitá-lo uma vez. não sabia explicar, apenas não conseguia ir. sabia que ele estava partindo e só tinha vontade de fugir.

na tarde em que fui visitá-lo finalmente, uns três ou quatro dias antes dele morrer, cheguei quando a enfermeira tentava convencê-lo a se alimentar. ele resistia. o café devia ser muito ruim mesmo para ele recusar. mas tinha também a posição, ele estava sentado na cama e respirava com muita dificuldade, as dores _diziam_ eram horrendas. ele tinha cardiomiopatia severa.

quando a enfermeira me passou a tarefa de fazê-lo comer e saiu, perguntei se ele não estava mesmo com vontade de comer, ele disse não, não insisti. fiquei um pouco em silêncio e ele me olhou com aquele olhar crítico de sempre e em um segundo deixou claro todo o seu descontentamento pela minha ausência. perguntou, sarcástico e agressivo: “veio fazer alguma matéria jornalística com doentes terminais?”

saí do quarto aos prantos, me escorando pelas paredes daquele lugar detestável. nunca mais o vi.

fazem quinze anos hoje que ele se foi, me deixando setembro para sempre com cara de outono.