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da memória e a dor da resignação

 

dizem que tem explicação a memória e o nosso acesso à gavetas antigas e fechadas há tanto tempo. sei lá. nunca sei de onde me vem as lembranças. simplesmente chegam e se instalam de um jeito… chega doer no osso do peito. e nunca vêm sozinhas, é sempre de caminhão.

foi de repente que lembrei da minha avó Carolina levantando tarde da noite porque tinha ouvido alguém lhe chamar no portão. sempre desconfiei que ela adivinhava alguém precisando dela, do seu colo, e chegando no portão e acordava para receber, porque quem estava acordado não ouvia, só ela. cresci vendo essa cena se repetir. meus tios e tias e primos e primas chegando para passar a noite porque tinham brigado em casa, estavam separando, estavam no caminho entre Porto Alegre/Camaquã e Rio Grande e chegavam pra comer/dormir e aproveitavam para pegar um colo.

minha mãe nunca foi acolhedora assim. daí que esse colo coletivo e acolhedor e esse hábito na minha família se foi junto com a minha avó no carnaval de 1994. cresci entendendo o mundo errado, daí. achei que o mundo era assim, e quando eu precisasse teria colo e acolhimento na porta em que batesse. minha amiga da vida toda Fernanda e a família/casa/pais dela fizeram perdurar essa impressão errada em mim.

foi só depois do Calvin que descobri da maneira mais dura que era só a minha a Vó Carola e a família da Fernanda mesmo. e veio a lembrança de um dia horrendo em que não suportava mais a tortura diária, o aniquilamento, a cobrança e saí sem rumo com o Calvin pra rua já quase anoitecendo. fui parar na casa de uma amiga que não tinha como me abrigar e comecei a ligar para todos os amigos e amigas que lembrei. eu só precisava de uma noite de acolhimento como o da minha avó, tentar dormir bem e recuperar as forças para seguir enfrentando o horror em que vivíamos naqueles dias e anos.

lá pelo oitavo não e já não sabendo mais como lidar com a situação fui obrigada a me resignar. o processo de resignação é o mais doloroso pra mim. é minha maior aversão, reconhecer a falta de forças e voltar atrás de cabeça baixa, já humilhada para ser humilhada de novo. e o estranho de lembrar dessa dor é que faz tempo que não preciso vivê-la. vivo dias tranquilos em que não sinto falta de acolhimento ou afeto.

entre esse dia lá que precisei de uma outra Vó Carola e não encontrei foram uns dez anos tateando no escuro. só fui rever a generosidade e a solidariedade humana em sua forma mais fácil e simples quando decidi virar minha própria mesa e ir embora de Pelotas em busca sei lá de que. buscava vida, acho. encontrei bem mais que isso. e refiz minha cartela de amigos.

o sentimento é mais ou menos como os versos dessa música

i walked across an empty land
i knew the pathway like the back of my hand
I felt the earth beneath my feet
sat by the river and it made me complete

oh! simple thing where have you gone?
i’m getting tired and I need someone to rely on

e essas memórias e dor aí puxaram outra, de quando era universitária e viajava o país de ônibus. horas e horas de estrada quase sempre com uma mesma música na cabeça… mas aí já é outra história.


do direito à autonomia

tenho sol e ascendente em capricórnio, dizem. o comentário mais recorrente sobre minha personalidade é “só pensa em dinheiro” quando esse é o assunto. sabe o que é engraçado? sou a pessoa que menos pensa, se liga ou se importa com dinheiro. talvez o ascendente ao invés de potencializar o sol o anule, vai saber? amigues astrólogas nunca disseram isso, mas eu acho que é isso que ocorre. ou talvez minha lua em câncer seja o que mais me define, vai saber?

o que sei é que as características mais marcantes dos nascidos entre 22 de dezembro e 20 de janeiro que carrego é ser rancorosa e precisar de chão firme para estar, trilhar, ser. não é fácil ser essa que sou. juntar o não saber ganhar dinheiro nem se importar com o vil metal com o rancor e a necessidade visceral de chão desenha a contradição em si, e fode minha existência.

estou chegando aos 47 anos sem casa própria e sempre na iminência de ir morar na rua, desempregada, sem sequer conta no banco e dependendo da ajuda de amigues para sobreviver. bons, caros e raros amigues, é preciso observar e agradecer, mas que já devem estar cheios de terem que me ajudar _estou eu também cheia de precisar da ajuda deles_, e é aqui que o caldo entorna.

o capitalismo é perverso, destrói até o que deveria ser condição sine qua non para esquerdistas. meus queridos amigues sequer percebem quando atropelam meu direito à autonomia. e reproduzem os já bem gastos e conhecidos “pobre não pode ter frescura”, “cavalo dado não se olha os dentes” e quetais.

bueno, eu sou pobre e tenho frescuras. tenho problemas de estômago, alergias de pele e sofro de depressão. minha condição atual não é um mero destino de uma inata capricorniana que não sabe e não gosta de ganhar dinheiro. as opressões acumuladas somadas às minhas frescuras me arrancam as forças e minha alegria mais genuína que é trabalhar e exercer minha profissão _aquela a qual já até renunciei.

e eu posso até não saber/querer ganhar dinheiro, mas cresci multitarefas, multitalentos. sei cozinhar, sou boa em atividades manuais que requerem criatividade, tenho uma boa noção de semiótica e, dizem, escrevo razoavelmente bem para além das técnicas e do beabá do jornalismo. mas tem dias que o olho não brilha, o paladar e olfato somem e os sonhos se esgueiram pelas sombras fugindo de mim, a acidez no estômago acentua, a pele empelota e o ânimo-desejo-necessidade-vontade desaparecem.

eu sei que tenho um filho pra manter, três bocas humanas e duas caninas para alimentar, ainda tenho uma casa para cuidar e, portanto, não poderia me dar ao luxo dessas frescuras todas… mas tem dias em que nada disso importa. e os “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”, “vai à luta”, “pega esse touro pelo chifre” me oprimem e deprimem mais do que incentivam ou ajudam.

se tu é amigue meu/minha, mesmo, não me insulte perguntando “por que não faz num-sei-que-lá?”, “já tentou sei-lá-o-que?”, “fazer patatá tem dado um bom dinheiro”, “cortar a assinatura da tevê economizaria um bom dinheiro”. a intenção pode e deve ser a melhor, eu acredito, juro!, mas dói tanto ler e ouvir… não sou vagabunda, nem escorada, nem abusada ou sem noção ou gosto dessa situação vexatória de não conseguir garantir meu próprio sustento com meu trabalho. e dói mais ainda precisar verbalizar isso a quem amo.

eu já pensei e já tentei. e já repensei e já tentei de novo, mesmo sem condições para tentar nada. e de novo não deu. se existisse uma mísera possibilidade de sair dessa situação sozinha com minhas perninhas eu já teria saído.

de todas as dores que me corroem a alma, a autonomia ser uma conquista exclusiva do dinheiro é a que mais me afronta, ofende e calou _até hoje. eu deveria ter direito à autonomia junto com a vida, tanto quanto tenho direito à vida, independente de como vivo ou sobrevivo. todas as pessoas deveriam ter. porque vida sem autonomia é subvida, é não ser cidadã ou ser cidadã pela metade, é ser pessoa de segunda (terceira, quarta…) categoria.

tem bem pouca serventia bradar por um outro mundo, um novo marco nas relações ou pela substituição do parâmetro do capital pelo humano se no dia a dia reproduzimos e reforçamos as opressões do capital sobre seus desvalidos.

engraçado. nunca tinha me pensado ou dito como desvalida. mas os tais privilégios que o escalonamento das opressões me conferem não me estão sendo úteis. sou uma desvalida do capital. curso superior, computador com internet, tevê a cabo, microondas, nada disso me conferiu autonomia. até pros meus amigues queridos eu não tenho direito a escolhas enquanto não “tomar vergonha na cara e der um jeito de ganhar dinheiro”, esse objetivo tão nobre e tão significativo-significante da vida…

então, é isso. estou me causando a dor imensa de expor minhas vísceras e mazelas desse jeito para quem sabe deixar de sentir a dor monumentalmente maior de não ter minha autonomia respeitada por quem amo/me ama.

se me ajudar a sobreviver não é compatível com respeitar minha autonomia, por favor, não me ajude. há mais dignidade na morte do que viver assim.

 


Selo Inconveniência

 Mas pode chamar também de desajuste ou deselegância

Sem título-1

Foi uma bobagem. Ínfima. Mixaria, mesmo. Mas doeu. Me trouxe de volta aquela sensação de não pertencimento, de desajuste ao mundo e às pessoas, com suas relações cheias de códigos e etiquetas não publicados, mas que ~obrigatoriamente~ precisam ser aprendidos. É aí que não me encaixo. Não gosto da obrigação e sou, sim, inconveniente.

Quebro os códigos e os protocolos, assassino a etiqueta. E quando amigues, com razão, me puxam a orelha por causa desses deslizes eu me magoo. Não porque não possa ser criticada, óbvio que posso, e costumo refletir sobre as críticas, mesmo que reaja mal no momento. Mas esses puxões de orelha doem no coração. Me lembram o quanto não pertenço a esse mundo e nem domino os códigos de boa convivência.

Não é de todo ruim ser colocada no meu lugar. Desde que eu tivesse um lugar… 😦

O puxão de orelhas de hoje foi por uma mixaria. Acho até que poderia ter passado batido… Mas não passou. E doeu tanto, tanto… Estragou meu dia. Preparei meu café da manhã aos prantos e assim, aos prantos, o tomei. Fato que melhorei muito depois que comi. Então, por favor, ao me verem conectada entre 9h e 15h, lembrem de me perguntar se já comi? 😛

Enfim… Mais desagradável quando faminta. E ainda mais desagradável comendo.

#SeloIncoveniênciaFull


Meu lado lua

lua

Há uma sombra que persegue meus dias. Desde criança a vejo, sinto, pressinto. Nem sempre desagradável. Em muitos momentos me deixei acolher por ela, a salvo dos olhares invasivos e do julgamento alheio, que na verdade eu mesma  me impunha.

Cresci com ela, mantendo uma distância razoável, segura, que só era interrompida em extremos de necessidade. As crises eram constantes. O desajuste com o mundo, o descompasso com o tempo, os embates com os outros… Tudo tão doloroso e aos solavancos…

Fui perdendo o controle dessa distância e me misturando com a sombra. Ficando meio parecida com a lua, que dependendo do dia maior e mais brilhante ou menor e mais opaca. Chegando a dias de um completo nada.

As fases de escuridão foram ficando maiores  e deixando crateras a cada crise mais profundas. Fui aprendendo a lidar com as sequelas. Era isso ou não voltar mais a crescer, brilhar. Cada volta foi sendo mais bonita. Proporcional à dor sofrida com os solavancos da ida e da volta. E a beleza sempre me iludia que os tempos sombrios haviam acabado…

Tanta similaridade com a lua não é à toa e nem impune. Me confesso um pouco cansada desse eterno girar, girar… A única diferença é não ter periodicidade, não ter dia para escurecer ou iluminar. Não há certeza dos tempos, e a sombra me é tão mais segura e familiar…

Os dias são quentes e ensolarados aqui no Rio de Janeiro e justo por isso ando recolhida, a salvo de olhares invasivos e julgadores e do excesso de claridade. Confortável, aguardando a próxima fase.


Eu, desumana

Faz um certo tempo que me desconheço. Não me reconheço em ações e atitudes e nem mesmo na revolta, minha velha parceira da vida inteira. Será esse o lado bom da dor? Não falo da dor extrema que vem em contrações porque já sabe de antemão que o corpo não vai aguentar, mas àquela dor moto-perpétuo.

Há um ano, numa tarde muito fria (tipo 5ºC no máximo) e ensolarada, olhei meu filho dormindo, me debrucei sobre ele na cama, dei um longo beijo nele e saí quase que correndo porta afora antes que perdesse a coragem. Ainda não voltei. Os planos ainda não funcionaram. Nada ainda deu certo e não há um dia em que não me pergunte se darão, se valerá a pena… Certo mesmo só essa dor, que já fez morada. No dia em que ela for embora é capaz que sinta o vazio, o buraco no peito.

Já não me acho mais humana. Mutei. Virei uma outra coisa qualquer, sem nome, sem definição. De vez em quando me divirto, rio e até consigo relaxar. Mas acho graça e um tanto estranho se alguém me pergunta se estou feliz… Sobrevivo com um pedaço meu imenso longe de mim. Como seria possível a felicidade assim?

Para não ficar muito chata eu digo que aguento, que seguro as pontas, que só alguns dias é que são piores… A incrível arte de tentar mentir para si mesma, respirar fundo e tentar racionalizar a dor dizendo que será só por mais um dia. Não será. Mas, tomara que não demore muito.

Se alguém tiver algum alento não se acanhe em oferecer.

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Mais?
Dias de Mudança
Estranhamento
O amanhã colorido
Vapor de água
O caminho escolhido


O caminho escolhido


O mundo é desumano com as mulheres, é fato. Não só pela violência física, moral e psicológica como pela dureza do dia a dia. Escolher o caminho mais “fácil” e ter a vida comandanda e decidida por outros não garante facilidade/felicidade alguma e nem dias menos sofridos ou uma vida menos dolorosa. Mas é fato também que algumas mulheres conseguem viver numa bolha, mantida ou pela condição socioeconômica ou pela proteção de outrém(ns). Quem nasce pobre e “opta” por tomar as rédeas da própria vida se ferra, literalmente, e eu tento dar conta da minha desde os 14 anos de idade. Faz tempo que me ferro…

Mas mesmo nascendo pobre qualquer mulher poderia ter a “sorte” de encontrar proteção — família, amigos, companheiro/a(s) –, a não ser que seja queixo-duro demais, como diria meu pai a meu respeito. As pessoas olham para mim e têm a impressão que aguento tudo, resisto a qualquer pancada. Afinal, sou forte. Sei que sou responsável por essa impressão. De um jeito ou de outro eu sempre sobrevivo e saio, sim, mais forte de todos os embates.

Sim, sou forte. Mas não sou inquebrável e nem imortal. E tem uma hora que tudo fica muito pesado, porque não me contento apenas em escolher o caminho errado, escolho também o mais difícil e doloroso. É tipo um dom, sabe? Não importam as opções que se apresentem (ou a falta delas), a minha escolha (ou falta de) sempre será o caminho mais tortuoso e a maior dor.

Tanta força e teimosia faz com que minhas queixas e reclames sejam desprezados e desconsiderados pelas poucas pessoas a quem ouso reclamar e me queixar. O pensamento recorrente deve ser “ela é forte, só está com aquele maldito complexo de cinderela ou fazendo mimimi… logo passa e ela resolve tudo“. É fato que resolverei e superarei (acho), mas é certo que não vou esquecer os nãos e omissões e perderei mais uns pedaços nesse processo. Parece ser da minha natureza sobreviver, mas também é não esquecer. A minha “sorte” está sempre na desproteção e na minha própria força. Se ela falhar — e ela dá sinais sérios de desgaste –, danou-se. Ou melhor, danei-me. Não terei ninguém para juntar meus pedaços. Mas qual a novidade? Sempre juntei meus pedaços e me remontei sozinha.

Quem mandou nascer, se fazer e ser forte, né? De um jeito torto, eu me acerto no erro. É só mais um dia, só mais um caminho tortuoso em muitos que já trilhei e outros que ainda virão e independente do caminho, escolhi caminhar. Eu aguento, sozinha mesmo, pode deixar.

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ps: Qualquer semelhança com a música da Zélia Duncan não é mera coincidência…

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Das minhas utopias

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Meu amigo Deogar Soares usava este pensamento para definir sua inadaptação: “É como se existisse uma máquina do tempo predeterminando como e quando cada um de nós deve nascer. A hora do indivíduo. No meu caso, a máquina do tempo deve ter tido um crepe e aqui me pôs em hora e lugar errado. Talvez eu fosse pra amanhã. Talvez eu fosse do passado”.

Esse sentimento de não pertencimento a lugar, tempo e espaço me acompanha desde sempre. Me sinto mesmo um extraterrestre e, confesso, não chega a ser esquisito. Tenho até orgulho de sentir essa estranheza tamanha num mundo tão distorcido em valores, tão torpe. Não consigo me conformar que coisas valham mais que pessoas, que dinheiro valha mais que dignidade e menos ainda que provocar dor em outra pessoa, machucar física ou emocionalmente, seja considerado razoável simplesmente para se safar, salvar, manter seu bem-estar ou obter alguma vantagem. Do meu ponto de vista: Que vantagem há em se tornar menos humano?

Nesses dias em que os direitos humanos são a pauta do dia, e fala-se muito em tortura, abuso, morte e desaparecimento como formas de castigo a “subversivos da ordem”, me dou conta de como um simples pensamento, ideia, é capaz de aterrorizar outra pessoa a tal ponto de transformá-la num monstro. Não estou justificando comportamentos, apenas tentando entender – que fique bem claro.

Me ocorrem duas causas: ignorância e intolerância. A ampla maioria das pessoas é incapaz de conviver com a diferença. Certo estou eu e a maneira como vivo. Quem vive, pensa, se comporta de maneira diferente está errado. Admitir que o outro possa estar certo significa estar errado? Só existem duas alternativas? Obviamente que não, mas como desconhecemos as demais, excluímos.

A nossa maior qualidade como humanos é a multiplicidade, a capacidade de sermos muitos e cabermos todos na mesma espécie, na mesma definição de ser. A diversidade de pensamento e o embate civilizado de ideias é a nossa grande chance de crescimento, para não dizer a única. Afinal, que graça tem viver uma vida inteira, 70, 80 anos, se achando o certo, o correto?

A minha utopia maior sempre foi viver num mundo onde eu me sentisse parte dele, confortável – no sentido de bem-estar e não de comodidade. Significa dizer que este mundo seria habitado por pessoas que se esforçariam ao máximo para melhorar, progredir, crescer. E para isso obrigatoriamente interagiriam com os demais, “tudo junto misturado”, convivendo em harmonia, sem fronteiras, classes, fomes ou privações de qualquer ordem. Mas com inquietude e desconforto suficientes para sempre buscar novos caminhos e desafios.

Quero muito? Quero o impossível, quero mágica, sim. Mas por hoje, bastava não sentir essa dor causada por quem não entendeu a dimensão de minhas utopias maiores e me deixou de presente essa menor, não menos necessária.