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E fez-se a luz!

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Dia 31 — Um livro que acendeu a luz na minha cachola (extra)

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Durante o desafio de escrever sobre trinta livros em um mês segui os itens propostos, ou pelo menos tentei, já que não fui eu que pensei a brincadeira. Acabei esquecendo um livro muito importante na minha vida, aquele que acendeu uma luz dentro da minha cachola. Sabe qual é, aquele livro, aquela ideia que te faz ver o mundo diferente, com outras cores e ritmo? Decidi escrever um post extra e criar um item específico para ele.

Só lembrei disso porque fui responder a uma pergunta desafiante do amigo Mirgon Kayser sobre qual livro tinha mudado a minha vida e só consegui pensar em dois: Don Quixote de Miguel de Cervantes, que mudou minha relação com os livros e com a literatura, e o Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels. Sim, só poderia ser. Foi o Manifesto Comunista que acendeu essa luz dentro da minha cachola quando tinha quinze anos de idade.

Costumo dizer que nasci comunista e a teoria do Marx apenas se encaixou ao que já pensava e a minha forma de ver o mundo. Passei anos me sentindo um pouco amordaçada e reprimida dentro do PT que sequer socialista se dizia. Embora eu participasse de correntes bem mais à esquerda que o próprio PT (sim, teve uma época que o PT foi esquerda), havia os PC’s que me impediam de me dizer comunista. Claro que estou falando apenas de nomenclatura, porque durante os dez anos em que estive no PT não tive motivos para me envergonhar do partido ou pelo menos dos meus companheiros mais próximos.

O Manifesto Comunista foi responsável por diminuir o meu incômodo com o mundo, não no sentido de me acomodar mas de entender de onde vinha tanta inquietação e porque a exclusão de pessoas segundo sua classe social ou sua raça me chamava a atenção já nas minhas primeiras relações sociais fora da família, no Jardim da Infância com apenas cinco anos.

Até ler o Manifesto Comunista, o sentido de me reunir com pessoas que pensassem parecido e que tivessem o objetivo de transformação era totalmente aleatório e intuitivo. Foram Marx e Engels que me indicaram a qual grupo eu pertencia, a direção e o caminho a percorrer. Tem como não amar?

“A história de toda as sociedades existentes até aqui é a história de lutas de classes.
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma guerra ininterrupta, ora franca ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária, da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta.” (trecho do Manifesto Comunista, capítulo Burguesia e Proletariado)

Escrevi este post enquanto revia O Último Imperador, de Bernardo Bertolucci, e me percebo fisgada de novo com meu compromisso na luta pela libertação dos oprimidos, com luta da minha classe. E não há forma melhor de enxergar isso do que em meio à crítica, diante da distorção do manifesto de Marx e Engels, como foram todas as experiências do chamado “socialismo real”.

Baixe daqui o Manifesto Comunista em pdf.

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No desafio 30 livros continuam a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Marília do Mulher Alternativa, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Renata do Chopinho Feminino, a Júlia do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas e o Eduardo do Crônicas de Escola. E tem mais a Fabiana que posta em notas no seu perfil no Facebook.

A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel, a Rita do Estrada Anil, o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo, a Grazi do Opiniões e Livros e a  Juliana do Fina Flor já terminaram o desafio. Eu escrevi mais um post de maluca que sou, Rá!!!

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Despedida e vontades

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Dia 30 — Um livro que você ainda não leu mas quer

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Último dia do desafio 30 livros em um mês e depois de ler tantos relatos apaixonados tenho uma lista interminável de livros que desejo ler. A Mayara fez um relato tão lindo de “A Mulher Habitada” da Gioconda Belli que é impossível não desejar ter pelo menos um pedacinho de sua emoção, e eu já o baixei em espanhol.

Marília escreveu sobre “Três Vidas” da Gertrude Stein como uma de suas autoras favoritas e como, vergonhosamente, ainda não li nada dessa escritora esse está na mira. A fofa, e ainda desconhecida pra mim, da Grazi me deixou com vontade de ler dois de seus livros favoritos, “A Mulher Desiludida” de Simone de Beauvoir e “A Cidade do Sol” de Khaled Hosseini — conheço os dois autores e isso só faz a vontade aumentar.

Seguindo a lista, a Cláudia me revelou uma história que parece ser bem conhecida, só eu não deveria saber, sobre a autora de “Frankenstein“, Mary Shelley que o escreveu com apenas 19 anos entre 1816 e 1817 e deu o pontapé inicial no gênero de terror gótico. Mesmo conhecendo a história do universitário que cria um monstro e depois abandona sua criatura, fiquei com vontade de ler o original escrito por essa guria. A querida da Renata Lima me ensinou muitas coisas com seu afeto pelos livros, histórias e personagens. Desde que a conheci nunca mais consegui ir dormir sem ler pelo menos uma página e isso me faz um bem danado, um bem que ela me trouxe junto com a dica de um de seus livros mais queridos, “O Sol é Para Todos” de Lee Harper. Eu chego lá.

Pulando para a outra Renata, a Lins, descobri uma história dela com um livro que é de fazer chorar. Não vejo a hora de poder ler “O Encontro Marcado” de Fernando Sabino e poder entender um pouco mais dessa emoção e conhecer um pouco mais dessa generosa amiga que tenho certeza, veio pra ficar na minha vida. Da fina flor Juliana fiquei intrigada com sua série favorita do Peter Robinson que são cinco livros policiais, “Perto de Casa” — “Pedaço do Meu Coração” — “Caso Estranho” — “Brincando com Fogo” — “Amiga do Diabo” e não sei se chego a ler todos (não curto muito histórias policiais), mas prometo experimentar pelo menos um.

Fiquei impressionada com o Eduardo de quem não conheço nada e que postou como livro mais querido de todos “Cartas a um Jovem Poeta” do Rainer Maria Rilke que é o meu livro de cabeceira e o livro que mais vezes li na vida, e agora é como se já soubesse muito de sua alma. A Tina, que começou tudo isso, me deixou várias vontades como “O Chão que Ela Pisa” de Salman Rushdie, “O Animal Agonizante” de Philip Roth (que originou o roteiro do filme “Elegy” que eu amo) e ainda “O Filho Eterno” de Cristovão Tezza.

Da instigante Júlia vem o amor por Mario Benedetti e ficou a dica de um livro dele que eu ainda não li, “La Tregua“, e uma vergonha intergalática que terei que assumir aqui: eu desconheço, ignoro por completo, “O Guia do Mochileiro das Galáxias” de Douglas Adams. Me informou a Júlia que são cinco livros e não vai ser fácil ler tanta ficção científica, mas preciso me livrar dessa vergonha. Questão de honra. Da lista da sensível e suave Rita vieram duas dicas preciosas “A Soma dos Dias” de Isabel Allende e “Os Homens que Não Amavam as Mulheres” de Stieg Larsson (essa dica ganhou o reforço da Renata Lima). Na lista ainda incompleta da Fabiana encontrei poucos livros com os quais me identifiquei, nosso gosto diverge bastante, acho, e espero vê-la concluir o desafio para conhecê-la melhor através de seus livros.

Por último. O desafiador Pádua Fernandes me deixou uma lista interminável de livros e vontades. Poucas vezes conheci alguém com um gosto literário tão estranho a mim, foge completamente à obviedade e ao senso comum, e escolhi um para citar aqui: “Folhas de Relva” de Walt Whitman, que lerei em breve. E por fim, fim mesmo, a Graúna doida e bandoleira da Lu que citava tantos livros em cada um de seus posts que quase me enlouqueceu. Ficou a vontade imensa de mergulhar de novo em Clarice Lispector e reler com urgência “O Morro dos Ventos Uivantes” de Emily Brontë, onde há a mais romântica frase de todas (segundo a Graúna):  “seja do que for que nossas almas são feitas, a dele e a minha são iguais”.

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No desafio 30 livros continuam a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Marília do Mulher Alternativa, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Renata do Chopinho Feminino, a Júlia do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas e o Eduardo do Crônicas de Escola. E tem mais a Fabiana que posta em notas no seu perfil no Facebook.

A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel, a Rita do Estrada Anil e o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo, Grazi do Opiniões e Livros e a  Juliana do Fina Flor já terminaram o desafio e eu encerro hoje, finalmente.

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Nunca leram um livro inteiro pra mim… #MiMiMiMi

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Dia 29 — Um livro que alguém leu pra você

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Não lembro de alguém lendo um livro para mim, pelo menos não inteiro. Mas na minha infância o meu avô paterno, Francisco, lia trechos da bíblia para mim (pelo visto não adiantou muito) e lembro de gostar. Acho que esse foi o meu primeiro contato com o realismo fantástico, porque tem algumas histórias, “vamu combiná”, que não críveis. A Renata escreveu um post divertidíssimo a respeito.

Lembro da minha adolescência da minha querida amiga Fernanda lendo trechos de qualquer livro que estivesse lendo para mim ou das matérias de revista que curtia. A Fernanda tem um dom inexplicável de traçar paralelos com realidades cotidianas e isso acontece no sentido inverso também. De repente ela está vendo uma cena babaca de novela e diz que ali está presente o conceito x do pensandor y, desenvolve um pouco mais e não há como discordar. É um privilégio conviver com a Fernanda, verdadeiro aprendizado.

Já no comecinho da faculdade tive um colega, na verdade um amor recolhido, que gostava de ler trechos do Ferreira Gullar para mim enquanto eu lia Lobo da Costa para ele.

Confesso que gostaria demais de ter um livro que pudesse citar nesse item, mas só tenho mais algumas lembranças para dividir. #MiMiMiMi

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No desafio 30 livros em um mês a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Marília do Mulher Alternativa, a Grazi do Opiniões e Livros, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Juliana do Fina Flor, a Renata do Chopinho Feminino, a Júlia do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas e o Eduardo do Crônicas de Escola. E tem mais a Fabiana que posta em notas no seu perfil no Facebook.

A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel, a Rita do Estrada Anil e o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo já terminaram o desafio.

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Porque nem sempre os finais são felizes

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Dia 27 — A história de amor favorita

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A mais fácil das escolhas desse meme. Quando olhei a lista de cara sabia que a história de amor favorita era (e é, e acho que sempre será)  O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez. Desculpem-me os fãs de Shakespeare, mas a história de Fermina e Florentino coloca no chinelo Romeu e Julieta, porque ao invés de morrerem jovens (adolescentes) e inconsequentes por amor, os personagens de García Márquez vivem, sobrevivem, por amor para se encontrarem, finalmente, ao final da vida. Porque se é para amar que seja para viver, para impulsionar a vida. Né?

Quando essa história ganhou uma versão para o cinema — que não lhe faz justiça, muito pelo contrário e nem o fato de Florentino ser interpretado por Javier Bardem (ah, o Bardem…) me empolgou, é sua pior atuação no cinema (na minha modesta opinião) — li uma crítica do Érico Borgo em que ele conta como foi apresentado ao livro. Disse Érico: Quando li pela primeira vez O Amor nos Tempos do Cólera, um amigo que me emprestou o romance avisou categórico: “Cem Anos de Solidão é incrível, mas o próprio Gabriel García Márquez disse que este é o livro que ele ‘escreveu com as entranhas'”. Se o colombiano prêmio Nobel de literatura realmente declarou isso ou não, não sei – e a história é boa demais para ser desmentida por uma eventual busca no Google. Gosto dela assim. De qualquer forma, o que falta ao filme que adapta o livro é justamente isso… “entranhas”. Certíssimo, ele! Gostei tanto dessa história e ela se encaixa tanto, parece tão verdadeira, que também não quero saber se é de fato verdade. García Márquez a escreveu com as entranhas, ponto.

Um amor sem regras ou barreiras entre dois jovens com suas cartas viscerais transbordantes de afeto, ambientado numa pequena cidade caribenha no final do século XIX e que resistiu à distância, aos preconceitos e à hipocrisia da sociedade em que viviam e ao tempo. Viveram separados durante toda a vida, sobreviveram é a expressão correta. Florentino jurou amor eterno a Fermina e mesmo quando ela se casou com Juvenal Urbino sua jura persistiu. Ele se relacionou com muitas mulheres durante a vida sem se envolver com nenhuma, enquanto construía uma fortuna pensando no dia em que poderia conquistar Fermina. Esse dia chegou só quando o marido dela morreu, mais de cinquenta anos depois do primeiro encontro.

García Márquez é um sedutor inveterado, pelo menos para leitoras como eu que se atraem pela dificuldade, pelo desafio. Quanto mais difícil e estranho o texto, mais o quero. Virei refém de García Márquez nessa história. Lembro até hoje do suspiro longo e profundo e meio infinito quando li as últimas frases de O Amor nos Tempos do Cólera:

– Está dizendo isso a sério? – perguntou.
– Desde que nasci – disse Florentino Ariza – não disse uma única coisa que não fosse a sério.
O comandante olhou Fermina Daza e viu em suas pestanas os primeiros lampejos de um orvalho de inverno. Depois olhou Florentino Ariza, seu domínio invencível, seu amor impávido, e se assustou com a suspeita tardia de que é a vida, mais que a morte, a que não tem limites.
– E até quando acredita o senhor que podemos continuar nesse ir e vir do caralho? – perguntou.
Florentino Ariza tinha a resposta preparada havia cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com as respectivas noites.
– Toda a vida – disse.

Mesmo que Florentino e Fermina não terminassem a história juntos, essa ainda seria a minha história de amor favorita, porque na vida real, longe dos contos de fada, nem sempre os finais são felizes mesmo que o amor seja intenso e dure a vida toda.

Baixe daqui O Amor nos Tempos do Cólera em pdf.

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No desafio 30 livros em um mês a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Marília do Mulher Alternativa, a Grazi do Opiniões e Livros, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Juliana do Fina Flor, a Renata do Chopinho Feminino, a Júlia do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas e o Eduardo do Crônicas de Escola. E tem mais a Fabiana que posta em notas no seu perfil no Facebook.

A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel, a Rita do Estrada Anil e o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo já terminaram o desafio.

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O gosto das lembranças…

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Dia 26 — Um livro que lhe faz adormecer

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O livro que me faz/fazia adormecer — e talvez por isso eu durma tão mal de uns tempos para cá — é um livro de pequenos e deliciosos contos de Clarice Lispector, Felicidade Clandestina. Clarice escreve de um jeito como quem te pega pela mão e te leva para passear no jardim da sua infância, das suas mais ternas lembranças. E esse, em especial, é uma canção de ninar.

Teve uma época, confesso, que nutria um certo preconceito com Clarice, achava-a muito viajandona. Nessa época minha leitura era muito pesada, sólida e as letras de Clarice pareciam desvios. Até o dia em que peguei o caminho do desvio e me fui sem data para voltar.

O conto de abertura e que dá título ao livro é mágico. Uma menina (que parece ser a autora, o conto é escrito na primeira pessoa) sedenta pela leitura e sem recursos para custear sua fome de letras se deixava vitimar pelo sadismo de outra menina que a torturava em seu desejo de viajar nas páginas do livro prometido — Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Clarice termina esse conto dizendo: “Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Mas o conto com que mais vezes adormeci lendo, que conta sobre travessuras de guria roubando rosas e pitangas, vou socializar:

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Cem anos de perdão

Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.
Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. “Aquele branco é meu.” “Não, eu já disse que os brancos são meus.” “Mas esse não é totalmente branco, tem janelas verdes.” Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.
Começou assim. Numa das brincadeiras de “essa casa é minha”, paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso
pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores. Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta corde-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.
Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente
com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes
raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.
Eis-me afinal diante dela. Paro um instante, perigosamente, porque de perto ela ainda é mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.
E, de repente – ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa.
O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.
Levei-a para casa, coloquei-a num copo d’água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
Foi tão bom.
Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.
Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensangüentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora.
Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.

Cresci entre duas casas no mesmo bairro na periferia de Pelotas e nas duas tinha um quintal imenso, com árvores de frutas e flores e eu podia brincar com as flores — quando não tinha ataques alérgicos, como quando resolvi me pintar com o amarelo dos bem-me-quer e comê-los — e numa dessas casas, a da minha avó, tinha várias árvores de frutas; goiaba, laranja, bergamota, araçá, ameixa amarela, pera, caqui, butiá e pitanga! Então, eu não precisava roubar rosas e pitangas e achava graça e relaxava com esse conto. Mas, preciso confessar, roubava rapadurinha de leite que a minha avó fazia. Sempre que leio esse conto chego a sentir o gosto das rapadurinhas da minha avó que, tenho certeza, deixava-as sempre no mesmo lugar de propósito para que eu as roubasse.

Baixe daqui Felicidade Clandestina em pdf.

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A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel e a Rita do Estrada Anil já terminaram o desafio.

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Dez dias que abalaram o mundo e a minha vida

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Dia 25 — Um livro que você odiava mas agora ama

Dia 25 — Um livro que era o mundo

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Quando li Dez Dias que Abalaram o Mundo de John Reed pela primeira vez, emprestado da biblioteca do PT de Pelotas quando tinha 19 anos, achava que já sabia tudo o que precisava saber sobre a Revolução Russa através dos relatos de seus próprios líderes. Me enganei. De fato um americano foi capaz, através de seu olhar estrangeiro, de sua precisão e capacidade de apreensão e concisão, de escrever o melhor e mais fiel relato da Revolução Russa. Nem Leon Trotsky com sua incrível visão estrategista conseguiu tal proeza em “Como Fizemos a Revolução de Outubro” (e olhem que li o livro de Reed quando ainda era trotskista).

Este livro é um pedaço da história, da história tal como eu a vi. Não pretende ser senão um relato pormenorizado da Revolução de Outubro, isto é, daqueles dias em que os bolcheviques, à frente dos operários e soldados da Rússia, tomaram o poder e o depuseram nas mãos dos sovietes. Trata principalmente de Petrogrado (antiga São Petersburgo, futuramente Leningrado e agora São Petersburgo de novo), que foi o centro, o próprio coração da insurreição. Mas o leitor deve ter em mente que tudo o que se passou em Petrogrado repetiu-se, quase exatamente, com intensidade maior ou menor e a intervalos mais curtos ou mais longos, em toda a Rússia.” (início do prefácio do autor)

Foi Reed com seu relato sem glamour ou romance, descrevendo disputas e discussões e problemas enfrentados durante o processo revolucionário que me deu uma dose cavalar de realidade e acabou despertando minha atenção para coisas que só fui entender melhor depois.

A cidade estava tranqüila. Nenhum assalto, nenhum roubo, nem sequer uma briga entre bêbados. À noite, patrulhas armadas percorriam as ruas silenciosas. Nas praças, os soldados e os guardas vermelhos, ao redor das fogueiras, riam e cantavam. Durante o dia, grandes multidões aglomeravam-se nas calçadas para ouvir as intermináveis discussões entre estudantes, soldados, negociantes, operários.
Os cidadãos seguravam-se pelo braço no meio da rua.
— É verdade que os cossacos vêm aí?
— Não.
— Quais são as últimas novidades?
— Não sei de nada. Por onde andará Kerenski?
— Ouvi dizer que está somente a oito verstas (medida linear que vale aproximadamente mil e sessenta e sete metros) de Petrogrado. É verdade que os bolcheviques se refugiaram no cruzador Aurora?
— É o que dizem…
Nas paredes, um ou outro jornal estampava as últimas notícias: retificações, apelos, decretos.
Um longo manifesto reproduzia o histórico apelo do Comitê Executivo dos Deputados Camponeses:
“… Os bolcheviques afirmam, cinicamente, que contam com o apoio dos Sovietes de Deputados Camponeses… Toda a Rússia operária precisa saber que isso é uma mentira, que todos os camponeses, por intermédio do Comitê Executivo do Soviete Pan-Russo dos Deputados Camponeses, repelem, com indignação, qualquer participação dos camponeses organizados nessa criminosa violação da vontade da classe operária.”
Eis outro manifesto da seção dos soldados, do Partido Socialista Revolucionário:
“A louca tentativa dos bolcheviques está prestes a fracassar. A guarnição está dividida. Os funcionários dos ministérios declararam-se em greve. Dentro em pouco, não haverá mais pão. Todos os partidos, com exceção dos bolcheviques, abandonaram o Congresso. Os bolcheviques estão sós. Convidamos todos os elementos honestos a cerrar fileiras em torno do Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução e a preparar-se para responder seriamente ao primeiro chamado do Comitê Central.”
Em impresso especial, o Conselho da República citava as seguintes calamidades:
“Cedendo à força das baionetas, o Conselho da República foi obrigado a dissolver-se no dia 7 de novembro, suspendendo, assim, provisoriamente, seus trabalhos. Os usurpadores do poder, que têm sempre nos lábios as palavras ‘liberdade’ e ‘socialismo’, encarceraram numa prisão vários membros do Governo Provisório, inclusive os ministros socialistas; suspenderam os jornais e apoderaram-se de suas oficinas gráficas. Tal governo deve ser considerado inimigo do povo e da revolução. Precisamos lutar até derrubálo. O Conselho da República, enquanto espera poder reencetar seus trabalhos, convida todos os cidadãos a agrupar-se, estreitamente unidos, em todas as seções locais do Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução, que trabalha para acelerar a queda dos bolcheviques e para a formação de um governo capaz de dirigir o país até a reunião da Assembléia Constituinte.”
O Dielo Naroda escrevia:
“Uma revolução é uma sublevação de todo o povo. Pois bem, que vemos entre nós? Um punhado de pobres loucos enganados por Lênin e por Trótski… Seus decretos e seus apelos serão mais tarde recolhidos ao museu das curiosidades históricas…”
E o Naródnoie Slóvo (A Palavra do Povo), órgão socialista popular, dizia:
“Governo operário e camponês? Ninguém reconhecerá tal governo. Ele só poderá ser reconhecido pelos países inimigos…”
A imprensa burguesa desaparecera, provisoriamente. O Pravda publicava um resumo da primeira reunião do novo Tsik, o Parlamento da República Soviética Russa. Miliutin, comissário da Agricultura, tinha declarado nessa reunião que o antigo Comitê Executivo dos Sovietes Camponeses convocara o Congresso Camponês Pan-Russo para o dia 13 de dezembro.
— Em nossa opinião — disse ele —, não podemos esperar. Necessitamos do apoio dos camponeses. Proponho, portanto, que o convoquemos imediatamente. Os socialistas revolucionários da esquerda concordaram. Rapidamente redigiu-se um apelo aos camponeses da Rússia. Foi escolhido um comitê de cinco membros para a execução do projeto. O problema dos planos para a divisão das terras e para o controle da indústria foi adiado até que os peritos terminassem os trabalhos.
Foram lidos e aprovados três decretos: o Regulamento Geral da Imprensa, elaborado por Lênin, mandando suspender imediatamente todos os jornais que incitassem os cidadãos à resistência ou que deformassem, conscientemente, as notícias; um segundo decreto estabelecia a moratória para o pagamento dos aluguéis; o terceiro criava a milícia operária.
Foram, além disso, aprovadas outras providências: concedendo à Duma Municipal o poder de requisitar os andares e compartimentos dos prédios vazios; ordenando que todos os vagões fossem descarregados ao chegar às estações, a fim de facilitar a distribuição de gêneros de primeira necessidade e de tornar disponível a maior quantidade possível de material rodante.
Duas horas mais tarde, o Comitê Executivo dos Sovietes Camponeses passava para toda a Rússia o seguinte telegrama:
“Uma organização irregular bolchevique, chamada Comitê Organizador do Congresso Camponês, convidou todos os sovietes camponeses a enviarem delegados para um congresso que se vai realizar em Petrogrado.
“O Comitê Executivo Pan-Russo de Deputados Camponeses declara que considera perigoso o afastamento das províncias, neste momento, das forças indispensáveis à eleição da Assembléia Constituinte, mormente quando os camponeses e todo o país só podem ser salvos pela reunião dessa assembléia. Confirmamos, mais uma vez, que o Congresso Camponês vai reunir-se somente a 13 de dezembro.”

Mais do que descobrir John Reed através de seu livro e de sua cinebiografia “Reds” feita por Warren Beatty, e a partir do filme saber um pouco mais sobre a luta dos trabalhadores americanos e suas organizações de esquerda, descobri outros aspectos dentro daquela revolução que entre os 16 e os 18 anos nunca haviam me chamado a atenção.

Nessa época, como acho que todo esquerdista faz em algum momento de sua vida militante (não estou ditando uma regra, estou confessando que um dia achei isso e que acho, “acho”, que é comum a todos os ativistas da esquerda — posso estar redondamente enganada), entendia a tomada do poder pelo proletariado (ou por seus representantes) como sinônimo de liberdade e emancipação da classe trabalhadora. Confundia o processo ainda em curso com o alcance da própria liberdade. Claro que isso tem a ver com o mito criado em torno da revolução — e principalmente na Revolução Russa — e com esse sonho tão grande e utópico de virar o mundo do avesso e construir outro baseado no ser humano e não no capital, que acaba por nos tornar românticos demais, embora a luta de classes seja muito cruel, dura e perversa. Talvez por isso mesmo precisemos cultivar essa alma “viajandona” e ligeiramente “ingênua”, ou seria impossível suportar o dia a dia dessa batalha.

O John Reed descrito por Warren Beatty, a partir do momento em que conhece a feminista Louise Bryant até sua morte já na URSS, e que foi construído não apenas pelos relatos do próprio jornalista mas também através dos depoimentos de pessoas que conviveram com o casal (e eles aparecem no filme) e contando ainda com as anotações críticas de Emma Goldman — rebelde, anarquista e feminista, autora de “Minha Desilução na Rússia” de 1923 (antes da morte de Lênin) e uma compilação de artigos sob o mesmo nome publicada em 1924 –, de quem Reed era um amigo muito próximo.

Foi através de Reed e Emma que voltei minha atenção para o início do processo de burocratização na URSS e para o cerceamento de liberdades individuais, das quais sempre fui crítica — assim como criticava todo o leste europeu e as experiência do chamado socialismo real –, mas que atribuía erroneamente durante um tempo apenas a Stalin e à URSS após Lênin. Stalin de fato foi um tirano, um ditador perverso e agravou demais essa burocratização e corrupção na URSS, mas não podemos lhe atribuir toda a culpa. Trotsky já pontuava questões importantes para o Partido Bolchevique bem antes de ser forçado ao exílio e essas observações acabaram culminando em A Moral Deles e a Nossa de 1938, livro que ele concluiu sem saber que seu filho havia sido assassinado por Stalin.

Dez Dias que Abalaram o Mundo é o livro que era um mundo pra mim, antes mesmo de lê-lo. E mesmo a URSS nem existindo mais e a Revolução Russa não tendo mais a importância que já teve na minha vida (mesmo assim pretendo estar em São Petersburgo no seu centenário), sempre que revejo Reds (esse filme está na minha lista dos cinco melhores filmes da história), lembro de trechos do relato de Reed e sinto vontade de ler de novo esse livro que me faz viajar nas minhas lembranças, de uma Niara que era só um rascunho dessa que sou agora.

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Baixe daqui Dez Dias que Abalaram o Mundo em pdf ou, se preferir, compre aqui (impresso ou ebook).

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No desafio 30 livros em um mês a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Marília do Mulher Alternativa, a Grazi do Opiniões e Livros, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Juliana do Fina Flor, o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo (quase no final), a Renata do Chopinho Feminino, a Júlia do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas e o Eduardo do Crônicas de Escola. E tem mais a Fabiana que posta em notas no seu perfil no Facebook.

A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel e a Rita do Estrada Anil já terminaram o desafio.

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Um povo forjado no tempo da discórdia e unido pelo vento

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Dia 24 — Sua série de livros favorita

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Sempre que penso em O Tempo e o Vento — ou O Vento e o Tempo, título original da obra — de Érico Veríssimo sinto o Minuano cortando no rosto, congelando os ossos no meio do pampa. Quem é gaúcho sabe do que estou falando. Quem não é, infelizmente, sequer consegue imaginar. O tempo corre diferente para esse povo forjado na disputa, na discórdia e na guerra, unido apenas por esse vento.

Os três livros da série relatam períodos diferentes da história do Rio Grande do Sul que vão de 1680 a 1945 envolvendo as famílias Terra, Cambará (que se unem) e Amaral, e além de romancear os conflitos que marcaram a trajetória do povo gaúcho e brasileiro, relata a origem de lendas como a Teiniaguá, o Negrinho do Pastoreio e o mito de Sepé Tiaraju, índio guerreiro do povo guarani.

“Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo seus circuitos.” — Eclesiástes – 1: 4, 5, 6. (na abertura de O Tempo e o Vento)

O Continente

Narra a formação do Rio Grande do Sul através das famílias Terra, Cambará e Amaral. O ponto de partida é a chegada de uma mulher grávida na colônia dos jesuítas e índios nas Missões. Nasce Pedro Missioneiro, que depois de presenciar as lutas de Sepé Tiaraju através de visões e ver os portugueses e espanhóis dizimarem as Missões Jesuíticas conhece Ana Terra, filha dos paulistas de Sorocaba Henriqueta e Maneco Terra, donos de uma sesmaria na região do Rio Pardo. Ana Terra tem um filho com Pedro Missioneiro que é assassinado pelos irmãos de Ana. A fazenda é invadida por castelhanos, Ana consegue esconder o filho, a cunhada e a sobrinha, mas assiste ao assinato de toda família e é violentada. Ana Terra parte com o que restou da família para Santa Fé, onde se passa todo o resto da história.

Os sete capítulos de O continente (A Fonte, Ana Terra, Um Certo Capitão Rodrigo, A Teiniaguá, A Guerra, Ismália Caré e O Sobrado) contam a história da formação da elite riograndense, que culmina na Revolução Federalista de 1893/95, as disputas pela terra, a Revolução Farroupilha 1835/45 (declaração da República Riograndense e a separação do então Império) e ainda as Guerras do Paraguai 1864/70 e a Guerra do Prata (Argentina) 1851/52. Todas essas disputas e guerras marcaram definitivamente a vida e a identidade dos gaúchos que passaram a vida toda divididos, pelejando.

“O outro ficou um instante em silêncio, batendo a pedra do isqueiro para acender o cigarro que se apagara.
– Quem sabe?
– Não tem mais jeito. Qualquer dia temos que nos bandear pró outro lado do Uruguai.
Um grilo começou a cricrilar perto. Liroca tirou um toco de cigarro de trás da orelha, prendeu-o entre os dentes e, esquecido de acendê-lo, ficou olhando para o céu.
– Tomara que acabe duma vez esta revolução – suspirou.
– Por quê?
– Estou cansado de andar barbudo, piolhento, dormindo na chuva, acordando com geada na cara. Cansado de… – Calou-se de súbito.
– Mas é a guerra, Liroca.
Animado pela cachaça, que lhe dera um calor bom, Liroca continuou:
– Vivo com o estômago embrulhado. O cheiro de sangue e de defunto não me sai das ventas. Sinto-o na água, na comida, na mão, no vento, em tudo.
– É a guerra… – repetiu o outro.
– Mas é triste.
– Triste são os nossos companheiros degolados. Triste é o Gumercindo Saraiva morto.
Liroca tomou a colocar o toco de cigarro atrás da orelha. Estava mais calmo. A presença do companheiro lhe dava um certo conforto.
– Depois que o Gumercindo morreu tudo piorou. Ergueu-se com alguma relutância e apanhou a carabina.
– Bom, tenho de ir andando… – disse, sem nenhuma vontade de subir para seu posto.
O outro troçou:
– Tome mais um mate, compadre… Liroca tornou a suspirar:
– Muito mate tomei eu naquela casa.
– No Sobrado? – Casa de pica-pau…
– Os Cambarás são gente direita.
– Inimigo é inimigo. O chefe deles é quem diz: “Inimigo não se poupa”.
– O Licurgo é um bom homem.
– Todos eles são uns anjos. – Inocêncio deu uma palmada na coronha da arma. – Mas pergunta pra minha Comblain se ela gosta de caçar anjo.
Levantou-se também.
– Bom, Liroca, seja feliz. E dê lembranças pró calça-branca.
– Que calça-branca?
– O pica-pau que a noite passada se atreveu a sair do Sobrado e ir até o poço buscar água. O Bibilo estava na torre da igreja, viu aquela coisa
esbranquiçada, dormiu na pontaria e… pei! O bichinho testavilhou e caiu de bruços em cima da tampa do poço.
– Ficou lá?
– Ficou. De rabo pró ar. Está apodrecendo nessa posição. Dê lembranças pra ele.
Liroca estava chocado. Com morto não se brinca – achava ele. Até mesmo um republicano depois de morto deixa de ser um inimigo para ser apenas um defunto. E há qualquer coisa de sagrado nos defuntos.
– Olha aqui, Liroca – murmurou Inocêncio, aproximando-se do companheiro e soltando-lhe na cara o hálito de cachaça. – Tu vais ver como lá em cima da torre, sozinho, a gente fica com uma vontade danada de tocar sino. Sabes que noite é hoje?
– Não.
– Noite de São João.
– É mesmo?
– É. A noite mais comprida do ano. Toca sino, Liroca. A vila está que nem tapera. Anima a rapaziada, Liroca. Toca sino! É São João.
José Lírio não disse palavra. O outro fez meia-volta, deu alguns passos e, ao chegar à quina da igreja, voltou a cabeça para trás e disse:
– Agora vê só como é que procede um maragato de vergonha. Pôs a carabina a tiracolo e começou a atravessar a rua a passo calmo, como se estivesse acompanhando um enterro. No meio do caminho parou, bateu o isqueiro, tornou a acender o cigarro, tirou uma baforada e depois seguiu pachorrentamente seu caminho, desaparecendo por entre as árvores e as sombras da praça.
Dentro da igreja uma penumbra leitosa azulava o ar. Ao pé do altarmor tremeluzia a chama duma lamparina. Nos seus nichos as imagens dos santos pareciam guerreiros entocaiados, dormindo na pontaria. Liroca começou a andar pelo corredor, entre as duas carreiras de bancos. Levava a Comblain debaixo do poncho, como se quisesse escondê-la aos olhos de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade; caminhava encolhido, na ponta dos pés, olhando com o rabo dos olhos para os vultos dos santos, e com a desagradável impressão de que a qualquer momento ia ser baleado.
De súbito percebeu que estava de chapéu na cabeça. A Ia fresca! Deus me perdoe! Descobriu-se, rápido.
Entrou no batistério, levou instintivamente a mão à pia e fez o sinal da cruz. Ali ficava a escada que levava ao alto da torre. Liroca começou a subir os degraus devagarinho, e ao chegar ao campanário foi de novo envolvido pelo ar frio da noite. Tornou a botar o chapéu, aproximou-se de gatinhas do parapeito e espiou através duma das seteiras. Sentiu um aperto no coração: o Sobrado se achava agora tão perto, que se por um milagre Maria Valéria aparecesse à janela da água-furtada os dois poderiam ficar conversando sem precisarem altear muito a voz. Mas qual! Agora estava tudo perdido. O destino malvado o separara talvez para sempre da criatura que ele mais amava no mundo.
Maria Valéria simplesmente não simpatizava com ele, de agora em diante passaria a odiá-lo, pois nunca mais haveria de esquecer que José Lírio fora um dos sitiantes do Sobrado – era um maragato, um inimigo.”  (trecho de O Continente)

O Retrato

Início do século XX, o Rio Grande do Sul começa devagar seu lento processo de urbanização, mas a cultura predominante ainda é ditada pelo campo. Toda a história é marcada pelo contraste entre o Dr. Rodrigo Cambará (homônimo do capitão), médico formado em Porto Alegre de volta a Santa Fé com seus hábitos urbanos, em conflito com seu pai, Coronel Licurgo, ainda um homem do campo.

“Naquela tarde de princípios de novembro, o sudoeste que soprava sob os céus de Santa Fé punha inquietos os cata-ventos, as pandorgas, as nuvens e as gentes: fazia bater portas e janelas: arrebatava de cordas e cercas as roupas postas a secar nos quintais: erguia as saias das mulheres, desmanchava-lhes os cabelos: arremessava no ar o cisco e a poeira das ruas, dando à atmosfera uma certa aspereza e um agourento arrepio de fim de mundo.

Por volta das três horas, um funcionário da Prefeitura assomou à janela da repartição e olhou por um instante para as árvores agitadas da praça, exclamando: – Ooô tempinho brabo!
Num quintal próximo, recolhendo às tontas as roupas que o vento arrancara do coradouro e espalhara pelo chão, uma doma de casa resmungava: – É para um vivente ficar fora do juízo!”  (Abertura de O Retrato)

“Desde que chegara a Santa Fé, de volta do Angico, Rodrigo raramente se erguia da cama antes das nove da manhã. Esse hábito irritava Licurgo que, antes de partir para a estância, advertira:
– Acho que o senhor anda levantando muito tarde. Isso não está direito.
Rodrigo sabia que o levantar da cama cedo era parte importantíssima do ritual daquela ferrenha religião do dever e do trabalho, professada por gente da têmpera de seu pai e de Aderbal Quadros. Achavam esses dois gaúchos ortodoxos que um homem deve trabalhar de sol a sol e que há algo de desonroso e indecente no dormir até tarde, pois isso sugere noite de orgia, vícios condenáveis, vadiagem e falta de força de vontade; é, em
suma, um péssimo hábito que atrasa a vida das pessoas ao mesmo tempo que lhes solapa o caráter.
No entanto, agora que o pai se encontrava no Angico, Rodrigo, que nunca conseguia dormir antes de uma da madrugada, só deixava o quarto, na manhã seguinte, depois das nove. Dessa hora em diante seguia uma norma para ele docemente agradável e que, muito nova, não tinha ainda o caráter rançoso da rotina.
Descia para a cozinha e lá tomava dois ou três mates com a tia e Laurinda. Depois bebia uma pequena xícara de café simples, sem o que não podia fumar, e se dirigia para a farmácia, onde ficava a atender os clientes até as onze, hora da roda de chimarrão, à qual compareciam invariavelmente o Chiru, o Neco e don Pepe, e na qual se falava principalmente em mulheres e política. Nos momentos em que não estava a dizer mal do clero e da burguesia ou a derrubar cabeças coroadas, Pepe Garcia era um conversador pitoresco que sabia narrar com verve suas viagens pelo mundo e suas experiências com “esos animalitos singulares llamados mujeres”. Chiru vendia seus campos imaginários ou então dissertava sobre os fabulosos tesouros dos jesuítas que haviam de trazerlhe a independência financeira para o resto da vida. Não raro aparecia para chupar apressadamente um chimarrão o dr. Matias, e ao se retirar enchia os bolsos de almanaques e figurinhas, que costumava distribuir com grande sucesso entre seus clientes. O próprio tenente Rubim uma vez que outra entrava na roda das onze, embora se recusasse a participar do chimarrão, por achar aquilo uma coisa “anti-higiênica e promíscua” – observação que deixava Chiru profundamente ofendido.
Rodrigo detestava comer sozinho, e era raro o dia em que não tivesse um convidado ou dois à mesa. Chiru, no dizer de Maria Valéria, estava ficando um verdadeiro “freguês de caderno”. Já pela manhã, antes de sair, Rodrigo entrava na cozinha e começava a abrir e cheirar as panelas, perguntando: “Que é que vamos ter pró almoço, Laurinda?” Dava sugestões, pedia pratos especiais e quase sempre, insatisfeito com o que a mulata preparava, abria vidros de azeitonas recheadas, latinhas de paté fie foie gras, de sardinhas portuguesas ou anchovas e comia esses petiscos antes, durante e às vezes depois do almoço ou do jantar, aproveitando a ausência do pai – que só voltaria ao Sobrado em princípios do inverno -, tomava sempre às refeições uma garrafa de vinho francês ou italiano.
Quando via Chiru beber Chianti ou Médoc em longos sorvos, protestava:
– Isso não é água, animal! Vinho se bebe aos pouquinhos, degustando bem. Assim… Estás vendo, selvagem?
Chiru sorria, olhava para Maria Valéria, sacudia a cabeçorra leonina, dando a entender que perdoava tudo a Rodrigo porque lhe queria muito bem.” (trecho de O Retrato)

O Arquipélago

No Rio de Janeiro em 1945, já com o Dr. Rodrigo Cambará eleito deputado federal. Os personagens principais não são mais apenas espectadores dos fatos nacionais, mas participam diretamente deles. Personagens reais como Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha e Luís Carlos Prestes (todos gaúchos, claro) contracenam com os personagens criados de Érico. Mas de novo são as “revoluções” e as disputas misturadas aos conflitos da família Cambará.

“O general Isidoro se havia retirado de São Paulo com seu efetivo reduzido pela metade e agora estava encurralado na saliência do alto Paraná, entre Iguaçu e Catanduvas. Onde era que o Liroca via motivos para otimismo?
– Fracassaram os levantes de Sergipe, Amazonas e Pará… – acrescentou Rodrigo.
– Mais um pouco de conhaque, major?Liroca fez com a mão um gesto negativo, tornou a olhar para o mapa, soltou um suspiro sincopado, e murmurou:
– Mundo velho sem porteira!
Ergueu-se, aproximou-se do amigo, segurou-lhe o braço e perguntou:
– E se o Rio Grande se levantasse como um só homem, ha? Se a
gente marchasse para a foz do Iguaçu e se juntasse com os revolucionários
de São Paulo, ha? Depois era só tocar na direção do Rio e o governo
estava no chão.
Rodrigo pousou uma mão afetuosa no ombro do amigo:
– Liroca velho de guerra, sossega esse peito. Isso é um sonho. A revolução está perdida.
– O Rio Grande vai ficar desmoralizado!
– Por quê?
– Prometemos ajudar a derrubar o Bernardes e estamos de braços cruzados. Que é que os paulistas vão pensar de nós?
– Quem é que prometeu? Eu não prometi nada. Isso é uma revolução de militares, mais uma quartelada malfeita e malograda.
José Lírio fez um gesto de desamparo, encolheu os ombros e ficou a procurar nos bolsos do casaco palha e fumo para fazer um cigarro.
Chiru tomou um gole de parati.
– Mas o diabo é que os nossos correligionários vão acabar se metendo no barulho – disse. – O coronel Amaral me contou que o Zeca Neto, o Honório Lemes e outros chefes de 23 estão reunindo gente. – Baixou a voz.
– E cá pra nós, que ninguém nos ouça, a guarnição local está sendo trabalhada. O Juquinha Macedo me garantiu. Um sargento do Regimento de Artilharia disse que tudo agora depende dos oficiais de alta patente, pois os tenentes e a sargentada estão dispostos a dar o grito.
Rodrigo encolheu os ombros. Os amigos começavam a irritá-lo. Pareciam ter-se transformado em revolucionários profissionais. Viviam à espera duma revolução. Para eles o que importava era derrubar o governo. Ninguém se preocupava com programas.
– Que é que há contigo hoje, Stein? – exclamou. – Estás tão calado… Algum problema da política russa?
O judeu ergueu os olhos, sorriu e murmurou:
– Pelo contrário. Não temos problemas políticos, A Grã-Bretanha já reconheceu a União Soviética. A França não tardará. Os outros virão depois. Não temos pressa, podemos esperar.
A vida tem cada uma! – refletiu Rodrigo. – Ali naquela sala estava o velho Liroca preocupado com a revolução de Isidoro e Stein, com a de Lênin. E ele, Rodrigo Cambará, vazio de ideais, de entusiasmos, de projetos. No momento não tinha nem mulher. Era tudo uma miséria!
Tornou a encher o cálice de conhaque e bebeu-o num sorvo só. Fitou os olhos em Roque Bandeira e disse, quase agressivo:
– Estás engordando demais. Tio Bicho sorriu:
– Já estou gordo, doutor. Mas isso não me preocupa. O meu problema é outro.
– Que problema? És um filósofo. Levas tudo na flauta. Não tens responsabilidades nem compromissos. És um homem livre. Vives lá com teus livros e teus peixes. A propósito, quando é que dominas essa preguiça e vais conhecer o mar?
– Tem tempo. O mar pode me esperar. Faz alguns milhões de anos que está esperando…
Rodrigo se fez em silêncio uma pergunta íntima: “E tu, quando dominas a tua indecisão e vais a Paris? Há quase dois mil anos a cidade te espera”.
Mas, de onde tirar o dinheiro? Os negócios continuavam emperrados. Só se falava em “crise da pecuária”. Criara-se ouvindo o pai queixar-se disso. Teria havido algum período na história do Rio Grande em que não se falasse em crise?” (trecho de O Arquipélago)

Só fui ler O Tempo e o Vento depois de assistir a minissérie da Rede Globo (a primeira vez que vi o Rio Grande do Sul retratado em cadeia nacional) em 1985, e me decepcionei muito com alguns detalhes, que mais tinham a ver com as falhas na produção e na preparação dos atores do que com o roteiro praticamente já pronto na narrativa de Érico Veríssimo. A maior satisfação em ler O Tempo e o Vento, além de descobrir a obra de Érico Veríssimo e me tornar sua leitora, foi me ver retratada naquelas páginas, foi ler expressões que cresci ouvindo e pareciam estar fora do espaço. Acho que todo mundo precisa conhecer sua origem e Érico me deu essa sensação de pertencimento a um lugar e sentido a minha relação de amor e ódio com o Minuano e o frio do pampa. Essa foi mais uma leitura cortesia dos tempos solitários na biblioteca da Escola Técnica Federal de Pelotas entre meus 14 e 16 anos de idade.

Talvez (vejam bem, eu disse “talvez!”) só os baianos na sua relação e identificação com Jorge Amado possam entender a relação e identificação dos gaúchos com Érico Veríssimo.

Baixe daqui O Tempo e o Vento completo em pdf… ou compre daqui uma caixa especial com a trilogia dividida em sete volumes (a “míseros” R$ 286,00).

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PS.: Não pulei o dia 23 (livro que mais vezes li durante a vida), ele está incluso aqui.

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A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel e a Rita do Estrada Anil já terminaram o desafio.

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Para sempre Satolep

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Dia 22 — Livro favorito você teve que ler para a escola

Dia 22 — Um livro que é uma música (ou duas, ou três…)

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Adaptando o item  “um livro favorito que se tornou música” do já adaptado desafio do Pádua Fernandes, cheguei a um livro que é uma música ou uma música que é um livro. Enfim, Satolep, a música que abre o terceiro disco do cantor, compositor e escritor pelotense Vitor Ramil (“A paixão de V segundo ele mesmo“, de 1984), acabou virando livro. Ou, não.

Satolep é o seu terceiro livro, foi lançado em 2008, esteve entre os dez romances finalistas ao Prêmio Jabuti de 2009, levou oito anos para ser escrito e tem como personagem central não o narrador mas seu pano de fundo, a cidade de Pelotas (terra natal de Vitor e minha).

O fotógrafo Selbor retorna a “úmida e fantasmática” Satolep (palíndromo da palavra Pelotas) no dia em que completa trinta anos. Nessa cidade construída na imaginação de Vitor Ramil, seu protagonista e narrador encontra personagens reais da história pelotense como o escritor João Simões Lopes Neto, o poeta e jornalista Francisco Lobo da Costa e o cineasta Francisco Santos (autor de um dos primeiros filmes de ficção do Brasil). O encontro de Selbor com seu passado nas ruas de Satolep lá pelos anos 20 do século passado é de certa forma o encontro de Vitor com o seu passado no retorno a Pelotas, quando decidiu morar em sua terra natal e manter ao mesmo tempo uma carreira nacional — o que segundo ele não é fácil, já que passa quase sete meses por ano longe de casa. Selbor foi inspirado num fotógrafo que realmente existiu e documentou a cidade de Pelotas no início do século XX. Suas fotos, publicadas no Álbum de Pelotas (1922), um livro real, da Pelotas real, organizado por Clodomiro Carriconde que serviram como ponto de partida para a história.

Uma espécie de diário de viagem, um relato indireto dessa minha volta a Satolep“. As imagens são intercaladas à narrativa sempre acompanhadas de textos breves, instantâneos. São esses curtos relatos que, seguindo os passos do narrador pela cidade, vão narrando poeticamente a sua trajetória. Deu pra entender? Uma espécie de narrativa em que o narrador faz uma auto narrativa e vai revelando sutilezas com um espírito lúdico e divagante, forjada na umidade de Pelotas.

Trechos de Satolep:

“A umidade de Satolep é a maior do mundo. Nela João Simões Lopes Neto viu as faces possíveis da M’boitatá em cruzes de esquinas iluminadas.”

“O calçamento perfeito e o traçado rigoroso das ruas o excitaram pela manhã; à tarde, a delicadeza das fachadas contra o horizonte selvagem da planície o emocionou; quando escureceu, superfícies úmidas espelhadas numa geometria de sombras cambiantes puseram-no a imaginar e conceber tantas coisas que, embora falasse sem parar, não encontrava tempo de descrevê-las para mim.”

“Satolep revelada na radicalidade dos ângulos retos; infalível como o relógio alemão na torre sobre o mercado; espalhando-se ao redor como um argumento inexorável.”

Disse Vitor numa entrevista, sobre Satolep (o livro) e sobre si:

“No livro, o personagem João Simões Lopes Neto diz que não é fácil dizer-se artista. Eu sinto isso. E olha que desde a infância eu não me imagino senão como um artista. Ser artista é um projeto de vida em que ninguém acredita, só tu. O artista abre mão dos movimentos mais fáceis, como cursar uma faculdade, ter emprego normal, salário. Ele sabe que terá que viver daquilo que criar. Quem garante que vai dar certo? Tomei a decisão de ser artista muito cedo, mas até hoje não estou muito seguro dela, embora eu saiba que estou inútil para qualquer outro trabalho. Eu já não conseguiria começar em outra profissão, tipo normal, com horário. Isso jamais vai me acontecer. Meu personagem João Simões (em Satolep) diz que um artista pode se dizer inadaptado, mas nem todo inadaptado pode se dizer artista. Sempre me senti meio inadaptado, não talhado para as coisas mais objetivas da vida. Mas sempre vacilei em me dizer um artista, em aceitar plenamente essa idéia. Acho que foi assim com João Simões. Ele tentou vários negócios, mas não foi bem em nenhum. Por que? Talvez porque fosse fundamentalmente um artista. Mas talvez fosse difícil para ele se dizer um artista, ainda mais naquela época. No contexto da vida cultural pelotense de então, de saraus, sinhazinhas tocando piano, coisas amadoras, não havia muita chance de a obra dele ser avaliada como deveria. O ponto de vista dos outros sobre ele sem dúvida era falho, não poderia ajudá-lo na tarefa de se conhecer.”

Não sei se posso dizer que Satolep é uma música que virou livro ou um livro que é uma música — talvez nem o Vitor tenha essa resposta –, mas para quem nasceu ou viveu em Pelotas e tem no seu imaginário uma Satolep lúdica, mítica, mágica e até fantasmática em meio a tanta umidade, arriscaria dizer que sim.

Link para comprar Satolep.

Assistam o book trailer de Satolep (a música de fundo é “Noturno”) e ouça aqui Noturno completa.

Vitor Ramil inverteu o nome da cidade porque Pelotas não encaixava na métrica da música, e Satolep sim. Eu tenho toda a discografia dele e de seus três livros só não li o primeiro, “Pequod” (tem ainda “A estética do frio”, de 2004). É meu músico favorito e ouvir sua música me faz caminhar mentalmente pelas ruas de Pelotas. Quer coisa melhor do que a música que te leva pra casa?

Trecho da música Satolep:

“Só, caminho pelas ruas
Como quem repete um mantra
O vento encharca os olhos
O frio me traz alegria
Faço um filme da cidade
Sob a lente do meu olho verde
Nada escapa da minha visão.
Muito antes das charqueadas
Da invasão de Zeca Netto
Eu existo em Satolep
E nela serei pra sempre
O nome de cada pedra
E as luzes perdidas na neblina
Quem viver verá que estou ali.”

Ouça aqui a música Satolep completa.

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Aqui o site oficial do genial e amado Vitor Ramil.

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No desafio 30 livros em um mês a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Marília do Mulher Alternativa, a Grazi do Opiniões e Livros, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Juliana do Fina Flor, o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo, a Renata do Chopinho Feminino, a Júlia do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas e o Eduardo do Crônicas de Escola. E tem mais a Fabiana que posta em notas no seu perfil no Facebook.

A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel e a Rita do Estrada Anil já terminaram o desafio.

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Uma viagem pelo deserto

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Dia 21 — O melhor livro que você leu este ano

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Dentre os quatro livros que li este ano, por sinal todos em português (cada um com seu “dialeto”), No Teu Deserto  de Miguel Sousa Tavares foi o melhor. Devorei esse “quase romance”, definido assim pelo autor, de 128 páginas numa madrugada, acho que em pouco menos de quatro horas. Miguel é um escritor português, um viajante que gosta de narrar suas andanças pelo mundo de uma forma muito generosa e doce. Seus relatos são pura inspiração, transpiração e são tão especiais que é impossível não se sentir no lugar de seus personagens, vivendo e convivendo com eles.

Nesse livro, Miguel relata uma viagem sua ao Deserto do Saara vinte anos atrás onde conheceu uma mulher chamada Cláudia. Diz ele: “Passou-se comigo há vinte anos e muitas vezes pensei nela, sem nunca a contar a ninguém, guardando-a para mim, para nós que a vivemos. Talvez tivesse medo de estragar a lembrança desses longínquos dias, medo de mover, para melhor expor as coisas, essa fina camada de pó onde repousa, apenas adormecida, a memória dos dias felizes”. A história é contada em duas vozes, a de Cláudia e a do jornalista (que se deduz seja o autor) e é uma homenagem a essa viagem ao Saara e a essa mulher, só escrita depois de sua morte como uma confissão, uma espécie de tributo à suas lembranças com ela. Impossível não se apaixonar.

“Depois disso, voltei onze vezes ao Sahara (…) E, cada vez que voltei, pensei em ti e pensei como seria bom, voltar contigo. Nessas alturas, como nas outras, eu repetia a mim mesmo: ‘Não há regresso. Há viagens sem regresso nem repetição’. Lembras-te quando, no último dos irrepetíveis dias daquela viagem, estávanos nós a amarrar em Gibraltar, debruçados na amurada do barco que nos tinha trazido de Marrocos durante a noite, olhando a manhã de Dezembro, limpa e deslumbrante sobre as águas quietas do Estreito, e tu me perguntaste:
– Em que pensas?
– Estava a pensar que há viagens sem regresso. E que nunca mais vou voltar desta viagem. Nunca mais vou regressar do deserto.”  (trecho da pág. 114)

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Trecho de No Teu Deserto em pdf  e aqui o link para comprá-lo.

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No desafio 30 livros em um mês a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Marília do Mulher Alternativa, a Grazi do Opiniões e Livros, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Juliana do Fina Flor, o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo, a Renata do Chopinho Feminino, a Júlia do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas e o Eduardo do Crônicas de Escola. E tem mais a Fabiana que posta em notas no seu perfil no Facebook.

A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel e a Rita do Estrada Anil já terminaram o desafio.

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histórias que fazem História e que emocionam

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Dia 20 — O último livro que você leu

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Só li quatro livros em 2011 e todos quando ainda estava em Pelotas e precisava me dividir entre trabalho fora de casa, trabalho em casa, os cuidados com o Calvin e entre todas as outras coisas que leio e escrevo, sono, cansaço, etc. Mesmo assim considero vergonhoso. Mas… C’est la Vie!

O último dos quatro livros que li foi O Cardeal e o Repórter, de Ricardo Carvalho, o jornalista que esteve muito próximo do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns entre 1977 e 1984 revirando os arquivos militares sobre torturados, mortos e desaparecidos da ditadura militar brasileira. Juntos, descobriram fatos que viraram reportagens que se transformaram em marcos da resistência.

Neste período, Ricardo deu de bandeija para a Folha de São Paulo — e depois para outros veículos — vários “furos de reportagem”, quando a violação de direitos humanos era prática comum no Brasil e no cone sul da América Latina. O segredo de todos os furos e reportagens certeiras de Ricardo estava num informante secreto e altamente confiável, que era o próprio cardeal.

O livro descreve com emoção e precisão os bastidores dessas reportagens e vai revelando a relação de Ricardo com Dom Paulo. Algumas dessas histórias mais se parecem aventuras — algumas muito perigosas — como o encontro dos bispos brasileiros, em Itaici em 1977, onde era discutida a relação da igreja com a política que originou o documento “Exigências Cristãs de uma Ordem Política” e que foi tirado (roubado) do encontro pelos repórtes que faziam sua cobertura; a quase prisão de Perez Esquivel (prêmio Nobel da Paz de 1980) por quatro agentes federais e que por um triz não foi “esquartejado” no cabo-de-guerra entre os que tentavam prendê-lo e os que tentavam impedir sua prisão; a identificação dos primeiros filhos e filhas de presos políticos, sequestrados pela Operação Condor; a saída de Cláudio Abramo da Folha de São Paulo; entre muitas outras.

Enfim, o livro é recheado de histórias emocionantes. Mas, uma me marcou mais: O relato do encontro do primeiro corpo de um desaparecido da ditadura na Vala de Perus (Cemitério Dom Bosco, em São Paulo), Luiz Eurico Tejera Lisbôa, ao lado de sua viúva Suzana Lisbôa.  Esse relato eu já conhecia da entrevista que fiz com Suzana em 2009, de como foi encontrar os restos de seu marido, um dos poucos desaparecidos encontrados até hoje. O encontro dos corpos na Vala de Perus foi capa da revista Isto É, pauta que partiu da Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos, sob o comando de Dom Paulo.

Nem preciso dizer o quão emocionante foi esse livro pra mim, né?

Compre aqui O Cardeal e o Repórter.

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No desafio 30 livros em um mês a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Marília do Mulher Alternativa, a Grazi do Opiniões e Livros, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Juliana do Fina Flor, o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo, a Renata do Chopinho Feminino, a Júlia do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas e o Eduardo do Crônicas de Escola. E tem mais a Fabiana que posta em notas no seu perfil no Facebook.

A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel e a Rita do Estrada Anil já terminaram o desafio.

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Adaptando para continuar

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Dia 18 — Um livro que ninguém esperaria que você gostasse
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Dia 18 — Um livro que é uma cidade
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Juro que tentei achar o livro que ninguém esperaria ou imaginaria que eu gostasse, mas foi tão difícil que nem eu consegui imaginar qual seria. Fiz pesquisa, perguntei, mas não adianta, sou óbvia demais e quando não gosto de algum livro sequer termino de lê-lo. Largo mesmo. Foi tão complicado que travei no desafio e fiquei sem postar desde o dia 20 de setembro.

Mas não há de ser nada. Encontrei a salvação na lista adaptada do Pádua Fernandes e vou substituir esse item e mais outros três.

O livro que é uma cidade é um lugar imaginário e saiu da mente surreal e genial de Gabriel García Márquez. Me refiro a Macondo, retratada no romance Cem Anos de Solidão e que foi meu primeiro contato com o realismo mágico (ou fantástico), estilo que García Márquez ajudou a difundir mundo afora. A história fala de revoluções e fantasmas, incesto, corrupção e loucura, tudo tratado com naturalidade como se fizesse parte da vida. E faz.

Macondo é uma cidade mítica e foi a cidade dos descendentes de seu fundador, José Arcadio Buendía, durante um século. Uma aldeia aparentemente pacata em que vivem trezentas pessoas. Buendía a construiu na sua juventude, quando com seus homens, mulheres, crianças e animais, atravessaram a serra procurando uma saída para conquistar o mar. Após vinte e seis meses de luta, desistiram e fundaram a fictícia Macondo no lugar onde José Arcadio Buendía havia sonhado com uma cidade em que as casas tinham paredes de espelho.

“Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo.”

Assim começa Cem Anos de Solidão e vai até o surgimento do telefone. E tem ainda verdadeiros absurdos como um comboio carregado de cadáveres, uma população que toda junta perde a memória, mulheres que se trancam por décadas numa casa escura e homens que arrastam atrás de si um cortejo de borboletas amarelas.

Macondo foi baseada na cidade da Aracataca, onde García Márquez viveu parte da sua infância. Era o nome de um bananal que se localizava nas imediações da cidade e no dialeto Bantu significa “banana”.

Cem Anos de Solidão é uma das obras fundamentais da literatura latino-americana moderna e a considerada a obra mais importante da língua espanhola depois de Don Quixote.

Em 1966, García Márquez teve o momento de inspiração para escrever este romance que já o atormentava há mais de uma década. Largou o emprego, deixou o sustento da casa e dos filhos a cargo da mulher Mercedes e isolou-se por dezoito meses, trabalhando diariamente por mais de oito horas. No ano seguinte, publicou Cem Anos de Solidão. Quinze anos depois, já mundialmente famoso, diante da Academia Sueca e de quatrocentos convidados durante a entrega do Nobel de Literatura em 1982, pronunciou o discurso “A Solidão da América Latina”, questionando os estereótipos com que os latino-americanos eram vistos na Europa e a falta de atenção dos países ricos ao continente.

Não é fácil ler García Márquez, principalmente Cem Anos de Solidão. É amor ou repulsa à primeira leitura. Eu, amei!

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Baixe daqui Cem Anos de Solidão em pdf.

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No desafio 30 livros em um mês a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Marília do Mulher Alternativa, a Grazi do Opiniões e Livros, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Juliana do Fina Flor, o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo, a Renata do Chopinho Feminino, a Júlia do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas e o Eduardo do Crônicas de Escola. E tem mais a Fabiana que posta em notas no seu perfil no Facebook.

A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel e a Rita do Estrada Anil já terminaram o desafio.

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A secular relação entre prazer, culpa e mulheres

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Dia 17 — Um livro que é um prazer culpado

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Demorei tanto a chegar ao livro que é um prazer culpado que quase desisti. Aí, lembrei que teve um livro trágico com o qual me diverti muito, mesmo que isso pareça horrível para uma feminista. Me refiro ao Malleus Maleficarum — O Martelo das Feiticeiras, o livro que serviu como manual da Inquisição e que matou centenas de milhares de mulheres em fogueiras sob acusação de bruxaria na Europa.

Pode parecer estranho, mas em determinados momentos o surrealismo do livro é tanto que fica fácil esquecer que causou tanto mal. Vejam:

CAPÍTULO VII

De como as bruxas, por assim dizer, privam um homem de seu membro viril.

Já demonstramos que elas são capazes de remover o órgão masculino, não de fato arrancando-o do corpo humano, mas ocultando-o através de algum encanto, do modo como já descrevemos. Contaremos aqui alguns exemplos desses casos.
Na cidade de Ratisbon, vivia um jovem que, depois de uma briga com uma certa menina, desejando abandoná-la, ficou sem o membro. Foi-lhe, digamos, lançado algum encanto de forma que em seu corpo ele nada via ou tocava – era perfeitamente liso.
Preocupado com o que lhe ocorrera, foi a uma taberna beber vinho. Depois de lá sentado por alguns momentos, entabulou conversa com uma das mulheres da taberna e acabou contando-lhe toda a sua tristeza, explicando-lhe tudo, e mostrando a ela como seu corpo ficara. A mulher, astuta, perguntou se ele não suspeitava de ninguém que o tivesse encantado. Ele então falou-lhe da tal menina, revelando à mulher toda a história, ao que ela o aconselhou.
– Se não bastar a persuasão, é melhor que uses de alguma violência para fazê-la restaurar a tua saúde.
E assim, naquela mesma noite, o jovem ficou a postos no caminho por onde a bruxa costumava passar. Quando ela se aproximou, interpôs-se-lhe no caminho e suplicou-lhe que restituísse a saúde de seu corpo. A moça sustentou que era inocente e que nada sabia a respeito.
Ele então jogou-se em cima dela e, enlaçando-a pelo pescoço com uma toalha, avisou:
– A menos que me devolvas a minha saúde, hás de morrer nas minhas mãos.
A bruxa, impossibilitada de gritar, e com o rosto já inchado e lívido, balbuciou:
– Deixa-me ir que vou te curar.
O jovem afrouxou a toalha e a bruxa imediatamente tocou-o com a mão entre as coxas, dizendo:
– Agora tens de volta o que desejas.
O jovem contou depois, que, mesmo antes de olhar ou palpar, sentiu que o membro lhe fora restituído pelo mero toque da bruxa.

Depois de ler mais de 500 páginas de absurdos semelhantes não tem como não rir. E seria mesmo cômico se não fosse trágico. Acabei — talvez não por acaso — relacionando prazer e culpa justamente como a Inquisição, que normatizou a sexualidade da mulher no mundo ocidental cristão e a privou do direito ao prazer.

O Malleus Maleficarum é de autoria dos inquisidores dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger e foi publicado pela primeira vez na Alemanha, em 1484. Nessa edição da Rosa dos Tempos o prefácio é de Rose Marie Muraro. O li pela primeira vez aos 23 anos e ele fez parte de um grupo de estudos feministas de mulheres universitárias do qual eu participava em 1995, em Pelotas.

Baixe aqui O Martelo das Feiticeiras em pdf.

No desafio 30 livros em um mês também estão a Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel, a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Rita do Estrada Anil, a Marília do Mulher Alternativa, a Grazi do Opiniões e Livros, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Juliana do Fina Flor, o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo, a Renata do Chopinho Feminino, e a Júlia Schnorr do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas começou hoje. E tem mais a Fabiana Nascimento que posta em notas no seu perfil no Facebook. Mais alguém?


Das memórias que não tenho, ainda, e que parecem tão minhas

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Dia 15 — O livro favorito dos feriados e folgas

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O meu livro favorito dos feriados e folgas e de qualquer tempo livre que tenho é a trilogia Memória do Fogo de Eduardo Galeano — Nascimentos, As Caras e as Máscaras e O Século do Vento. O primeiro, Nascimentos, o tinha numa versão impressa comigo até bem pouquinho tempo atrás. Mas quando estive em Brasília para participar do 2º BlogProg o deixei com a Amanda Vieira para que ela o entregasse para o querido amigo Dandi Marques de presente, com a capa toda “customizada” pelo Calvin (hehehe).

Já publiquei alguns trechos deles aqui no Pimenta, como O Tempo, As Estrelas e Pachamama e ainda publicarei muitos outros mais sempre que estiver relendo-os. Antes de conhecer a América Latina ao vivo, em todas as suas cores, sons, sabores e pessoas (o que farei em breve) a conheci pelas palavras de Galeano nesses três livros mágicos em que ele conta de um ponto de vista da resistência cultural à dominação a história dos últimos 500 anos das três Américas através de contos e lendas.  Não à toa ele é o meu autor favorito.

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1918
Montañas de Morelos

Tierra arrasada, tierra viva

Los cerdos, las vacas, las gallinas, ¿son zapatistas? ¿Y los jarros y las ollas y las cazuelas? Las tropas del gobierno han exterminado a la mitad de la población de Morelos, en estos años de obstinada guerra campesina y se han llevado todo. Sólo piedras y tallos carbonizados se ven en los campos; algún resto de casa, alguna mujer tirando de un arado. De los hombres, quien no está muerto o desterrado, anda fuera de la ley.
Pero la guerra sigue. La guerra seguirá mientras siga el maíz brotando en rincones secretos de las montañas y mientras sigan centelleando los ojos del jefe Zapata.

(Memória do Fogo, O Século do Vento)

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O Relógios dos Sabores

Tom a leiteira, às sete, nasce o barulho de Lima. Com cheiro de santidade chega, atrás, a vendedora de tisanas.
Às oito passa o vendedor de requeijão.
Às nove, outra voz oferece doce de canela.
Às dez, os tamales, pamonhas salgadas, procuram bocas para alegrar.
Às onze é hora de melões e doces de coco e milho tostado.
Ao meio-dia, passeiam pelas ruas as bananas e romãs, os abacaxis, as frutas-de-conde leitosas e de veludo verde, os abacates prometendo polpa suave.
À uma, chegam os bolinhos de mel quente.
Às duas, a doceira anuncia picarones, bolos que convidam à gula, e atrás dela vem a canjica com canela e não há boca que esqueça.
Às três aparece o vendedor de anticuchos, pedacinhos de coração de boi no espeto, seguido pelos vendedores de mel e açúcar.
Às quatro, a pimenteira vende guisados e fogos.
Cinco horas é a hora do cebiche, peixe cru curtido em limão.
Às seis, nozes.
Às sete, a papinha de milho que ficou no ponto depois de ter sido exposta ao tempo nos telhados.
Às oito, os sorvetes de muitos sabores e muitas cores abrem de par em par, rajadas frescas, as portas da noite.

(Memória do Fogo, As Caras e As Máscaras)

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O Luzeiro

A lua, mãe encurvada, pediu a seu filho:
– Não sei por onde anda teu pai. Leve a ele notícias minhas.
Partiu o filho em busca do mais intenso dos fogos.
Não o encontrou ao meio-dia, onde o sol bebe seu vinho e dança com suas mulheres ao som dos atabaques. Buscou-o nos horizontes e na região dos mortos. Em nenhuma de suas quatro casas estava o sol dos povos tarascos.
O luzeiro continua perseguindo seu pai pelo céu. Sempre chega demasiado cedo ou demasiado tarde.

(Memória do Fogo, Nascimentos)

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Baixe daqui Memória do Fogo, Nascimentos, As Caras e As Máscaras e O Século do Vento (em espanhol) ou compre o box com os três volumes numa caixa especial aqui, por R$ 66,00 (aceito de presente também, rá!!!).

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Realidades absurdas nem tão fictícias assim

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Dia 12 — O livro favorito de ficção científica

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Já falei que não curto ficção científica? Então, não curto mesmo. Nem na literatura e nem no cinema. Raros e bons foram os livros de ficção científica que li. Entre eles Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, 1984 de George Orwell e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury.

Sou daquelas pessoas malucas que pra não se decepcionarem com versões cinematográficas de grandes livros, sempre que possível, assisto ao filme primeiro e depois leio o livro. Com Fahrenheit 451 foi assim. Só depois que já tinha assistido o filme e o resenhado para o blog de cinema é que fui catar o livro para ler. Mesmo já conhecendo a história e mesmo não curtindo ficção científica me arrisquei. E gostei mais do livro do que do filme. E olhem que François Truffaut é um desses gênios do cinema francês…

Mas essa história tem a ver com livros, com situações absurdas não tão impossíveis assim, com totalitarismo, sociedade e pensamentos controlados e isso está profundamente ligado ao meu mundo, político. O autor, o americano Ray Bradbury começou a escrever a história em 1947 e só publicou em 1953 — estamos falando do período mais crítico do macartismo nos EUA.

Resumão básico: no futuro todos os livros foram proibidos (ler ou possuir), opiniões próprias foram consideradas anti-sociais e desagregadoras e o pensamento crítico foi suprimido. O personagem central é Guy Montag, o “bombeiro” pacato e feliz com sua vidinha que tem a tarefa de queimar os livros, e 451 na escala Fahrenheit é a temperatura em que o papel incendeia. Surge a mocinha (sempre as mulheres, essas subversivas!) da história, Clarisse, que vai plantar a dúvida na cabeça do bombeiro enchendo-o de porquês, se ele é feliz, se nunca leu os livros antes de queimá-los, etc.

O tal futuro de Fahrenheit 451 baseia-se naquele princípio de Rousseau que os ignorantes é que são felizes, e que o conhecimento é a fonte do mal. O bombeiro acha que é feliz até a mocinha questionadora colocar dúvidas sobre sua “felicidade”.

Muitas foram as interpretações e leituras que se fizeram da obra de Bradbury, mas ele mesmo teria declarado que o romance não tratava de censura, mas de uma história sobre como a televisão destrói o interesse pela leitura. Então, tá.

Infelizmente não o achei em pdf traduzido para o português disponível para download. Se alguém souber de uma versão disponível avise, por favor.

Aqui é possível comprá-lo por R$ 32,00.

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O humor como crítica política é uma arma poderosa

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Dia 11 — O livro favorito com animais

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Livros sobre animais não me atraem. Sequer pego na mão para folhear. Mas teve um que me veio indicado como uma crítica contundente ao stalinismo através de uma sátira com animais. Obviamente estou falando de A Revolução dos Bichos do visionário inglês George Orwell.

A associação é direta, franca, com a Revolução Russa, Lênin, Trotsky e Stalin e o processo de burocratização da URSS, perseguição política e com a traição dos ideiais da Revolução Bolchevique. Praticamente devorei o livro em apenas um dia de tanto que gostei.

Resumindo muito, a história é mais ou menos assim… Um porco muito sábio e líder dos animais sonha com uma revolução dos bichos numa fazenda e, sentindo que irá morrer em breve, reúne todos numa madrugada em que o humano dono da propriedade estava bêbado para contar-lhes do seu sonho. O porco morre, mas os animais fazem a revolução mesmo assim. Ao tomarem o poder eles mudam o nome da fazenda e instituem os sete mandamentos do animalismo que são: 1) qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo; 2) qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo; 3) nenhum animal usará roupas; 4) nenhum animal dormirá em cama; 5) nenhum animal beberá álcool; 6) nenhum animal matará outro animal e; 7) todos os animais são iguais.

Os animais elegem um outro porco como líder e este é traído pelo amigo mais próximo, também porco, que o destitui e expulsa da fazenda. O porco traidor se corrompe de tal forma que assume a aparência humana, passa a andar em duas patas, veste roupas do antigo proprietário da fazendo (humano), adquire hábitos humanos como beber álcool e oprime os demais animais tanto ou mais que no período anterior à revolução. Os porcos tem status diferenciados na fazenda e eles alteram os mandamentos do animalismo por considerá-los desnecessários, uma vez que a revolução já aconteceu, e fica valendo apenas que: nenhum animal dormirá em cama com lençóis; nenhum animal beberá álcool em excesso; nenhum animal matará outro animal sem motivo e; todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que os outros.

Acabou que Orwell, de forma divertida e simples, escreveu a melhor crítica ao stalinismo já feita. Tem como não gostar?

George Orwell se chamava na verdade Eric Arthur Blair, era jornalista e escritor inglês e escreveu mais crônicas que livros ou romances. Usava também o pseudônimo e John Freeman. Ele lançou A Revolução dos Bichos em agosto de 1945 e morreu cinco anos depois.

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Baixe daqui A Revolução dos Bichos em pdf.

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