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no último dia de abril

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é sempre do mesmo jeito.

é como achar uma flor/folha seca no meio de um livro e passar o dia dali em diante tendo por companhia os cheiros, sóis ou chuvas, temperaturas, sabores, gentes e até os arrepios na pele do dia em que enfiaste a flor no meio do livro.

basta um acorde, uma cor, um verso. nem precisa fechar o olhos e já estou viajando. nem sempre é agradável. ultimamente trazem junto lágrimas. ando com uma saudade doída de mim. de como era, dos sonhos que acalentava e se perderam, das coisas que não vivi, dos abraços que não dei nem ganhei, das pessoas e lugares que não conheci.

sei que ainda posso. enquanto estiver respirando poderei e blá-blá-blá-whiskas-sachê, mas a gente vai envelhecendo e o que era muito fácil antes agora já parece um calvário. igualzinho aquele poema que o Borges não escreveu. não tenho 85 anos e nem estou morrendo, mas quanto mais os 50 se aproximam menos possibilidades sobram diante dos olhos. os caminhos estreitaram, empedraram e espinharam demais.

o tempo de caminho fácil e aberto trazido à tona neste último suspiro de abril era justamente um tempo perdido, ali entre a Escola Técnica e a faculdade de jornalismo, que sempre defino como desvio no sentido da produção de algo útil. embora intenso, como quase todos os anos daquele período, é como se tivesse jogado fora as possibilidades que tinha. e foram-se junto a disposição para tudo e qualquer coisa. quando olho para aquela Niara sorrio, tanto quanto balanço a cabeça em sinal de reprovação.

ao mesmo tempo que lamento o erro de perder o tempo para algumas coisas penso que deveria ter errado mais. sou muito condescendente com as Niaras de antes e muito crítica com a atual. será melhor inverter? crise existencial justo hoje, vejam só.

hoje, que teve um monte de merda pra dar conta. ataques à universidade pública e sua autonomia por este governo fascista de merda, uma deputada cretina querendo tirar o Paulo Freire de patrono da educação brasileira (ele que é nosso maior legado justo nesta área em que somos tão débeis), ter que assistir o Rodrigo Nhonho Maia virar defensor da Constituição e paladino da democracia, um desabafo soco-no-estômago do Márcio Chagas por todo o racismo sofrido no futebol gaúcho… e na finaleira do dia… ainda tivemos que nos despedir de Beth Carvalho.

deixo aqui uma promessa: no dia da derrota destes fascistas de merda cantarei VOU FESTEJAR a plenos pulmões e sambarei na cara da hipocrisia da sociedade toda. “terei minha vingança, nessa vida ou na próxima”. por todos nós, e pela Beth.


O tempo, e o meu tempo

tempo

Não é segredo pra ninguém meu profundo e sério relacionamento com a depressão. E não posso mentir, esse relacionamento se construiu/constituiu a partir da gravidez do Calvin. Os piores momentos que vivi, óbvio, não tem a ver com a existência do Calvin, mas foram decorrência da gravidez dele. Falta de estrutura minha, talvez. Falta de estrutura do mundo ao redor para nos abarcar… Quem sabe tudo junto.

Lembrar desse tempo é como descer ao inferno. É como tentar nadar no lodo. Não há forças, não há nenhuma mão estendida. Deste lugar ninguém te puxa para te dar colo ou mesmo para ter dar fôlego para mais uma braçada. Impossível pensar noutra coisa senão no fim.

Vivi isso várias vezes. Tantas que nem sei dizer como estou aqui. Como que ainda respiro. A sensação de sufocamento é tão forte que se torna física. O peito dói do esforço para respirar, para continuar vivendo mais um segundo, um minuto, uma hora. Quem sabe depois as forças apareçam…

Foi nesse lodo que aprendi a sobreviver. Criei uma tática de sobrevivência — justo eu que sempre me pensei desapegada da vida pelas tantas vezes que pensei em suicídio –. Não entrar em desespero, acumular forças, ficar quietinha, ir devagar, ou ficar, quase imóvel, quase vencida, até um momento de menor densidade do lodo, onde as poucas forças fossem suficientes para arriscar braçadas, e seguir, como se o tempo não existisse.

Sempre me ocorreu que essa talvez fosse uma estratégia indigna, a de adiar o inevitável. Tem dignidade em manter-se vivo assim? Ainda não sei. Peguei o tempo e o moldei do meu jeito. Passei a viver nesse tempo moldado, no meu tempo. Mas ele, o tempo aprisionado e moldado, deixou suas marcas.

É fato que muitas alegrias e encontros vieram depois desse(s) tempo(s) horrível(is), e também tive tempos de calmaria. E se não fosse a indignidade do meu apego não as saberia. Mas… sempre me pergunto: E se acontecer de novo? E se eu cair no lodo novamente?

O mesmo tempo que ameniza, faz esquecer, também aprisiona e causa ferimentos incuráveis… Num momento acho que estou segura, ainda dentro do meu tempo, e nem vejo o cerco se fechando.

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