Onde estavam as mulheres negras na ditadura militar?

Este texto faz parte da Blogagem Coletiva Mulheres Negras 2012.

Vou começar falando da dificuldade em escrever sobre mulheres negras e ditadura — na perspectiva que sempre abordo a ditadura, de luta e resistência pela esquerda. Não existem referências que falem especificamente sobre esse tema. E acho que relatar a dificuldade na pesquisa além de ser mais honesto pode dar uma vaga ideia do quão complicado é tratar do tema.

Fato é que não há referências anteriores à década de 70 sobre a luta dos negros e negras na resistência à ditadura militar e poucos são os registros de militantes negros nas organizações clandestinas e/ou da luta armada. Se não há referências do movimento negro imaginem da luta das mulheres negras… É, pois é. O ponto mais delicado, o setor mais oprimido da luta na esquerda (não vou usar o termo “mais baixo na escala da opressão porque não curto a expressão) se lutou contra a ditadura ou não deixou registros ou ninguém pesquisou ainda. Entendem porquê é tão importante a abertura dos arquivos secretos da ditadura civil-militar? Além de fazer criar corpo a necessidade de punição às violações de direitos humanos cometidas pelo Estado é importante para contar esse período da história que continua envolto numa névoa densa.

No calendário Afro está lá a referência ao dia 10 de novembro como “O governo Médici proíbe em toda a imprensa notícias sobre índios, esquadrão da morte, guerrilha, movimento negro e discriminação racial / 1969” e encontrei ainda esse texto com a referência do calendário e uma rápida contextualização do período sem citar fontes ou de fato explicá-la. Pesquisei os Atos Institucionais e pedi ajuda a um grande parceiro do Movimento #DesarquivandoBR, o Pádua Fernandes, perguntando se essa proibição saiu em algum AI. Mas não consta essa proibição, assim textual, em nenhum dos dezessete AIs. Doze deles são de 1969, mas nenhum foi publicado em 10 de novembro, sendo o último de 14 de outubro. Me contestem, por favor, se eu estiver errada.

Pesquiso e leio muito sobre a ditadura militar e sempre me incomodou a ausência dos negros e negras na resistência. E o incômodo não está em “ó, os negros não se aliaram a resistência”, mas por saber que a esquerda reproduz os preconceitos estruturais da sociedade e é tão machista, racista e homofóbica quanto qualquer reacionário. Pior do que isso, por ser esquerda acham que estão a salvo da reprodução desses preconceitos.

Feito o registro da dificuldade na pesquisa, vamos ao que encontrei. O Movimento Negro Unificado começou a se estruturar na década de 70 (provavelmente 1978), na negação da democracia racial vendida pela ditadura brasileira. Diz Nelma Monteiro, em texto de 21/08/2012:

“Os Movimentos Negros das décadas de 1970 e 1980, ao colocarem em suas agendas as denúncias de racismo institucional, de racismo à moda brasileira e da farsa da democracia racial, demarcaram um campo de força política imprescindível na conquista por direitos civis, políticos e materiais. Apesar do período de repressão militar, surgiu em São Paulo o movimento Negro Unificado (MNU) contra o Racismo – uma reação à ideologia dos militares que apregoavam e sustentavam a existência da democracia racial no Brasil.

No final da década de 1980, foi inequívoco o avanço dos Movimentos Negros em seu projeto político de denúncia do racismo institucional. É preciso lembrar a inegável contribuição desses segmentos que, com suas diferentes correntes e tendências, vêm contribuindo na construção de políticas afirmativas de valorização da população negra.”

É da década de 70 a origem do movimento Soul no Brasil, que tem como principal objetivo a valorização da cultura negra, a resistência cultural.

Recapitulando, então. Se o MNU surge ainda durante a ditadura e é dessa época um movimento de valorização da cultura negra (afora a cultura do samba já fazer o mesmo há mais tempo) para contestar a falácia da democracia racial dos governos militares, e já começa a se observar nas favelas cariocas (e baixada fluminense) e paulistas o extermínio sistemático de pretos e pobres “classificados” como marginais e bandidos, não é difícil concluir que mesmo que o tal AI com a determinação de que a imprensa não citasse “índios, esquadrão da morte, guerrilha, movimento negro e discriminação racial” não tenha existido oficialmente, ele existiu de fato.

Aliás, a grande imprensa precisava/precisa de um decreto para ignorar pobres, índios, negros e movimentos de insurreição (a não ser para caracterizar “vandalismo”) da ordem?

Um dos filmes, que salvo algumas alterações de fatos e datas, retrata as décadas de 60, 70 e 80 no Rio de Janeiro é Cidade de Deus de Fernando Meirelles. O filme que conta a formação da Cidade de Deus no início da década de 60 (e coincide com a ditadura) e os próximos vinte anos no local, dá uma ideia de como os negros eram tratados pelo Estado brasileiro e a pouca ou nenhuma atenção dada à violência específica de gênero. Sim, o elo mais fraco nessa corrente é a mulher negra e a falta de estrutura atual do Estado na atenção a sua discriminação específica denuncia que esse é um problema anterior à ditadura. Pode ter sido agravado, afinal a tortura praticada pelo Estado e seus órgãos de repressão que antes matava e desaparecia comunistas e “subversivos” hoje mata e desaparece negros e pobres. A abertura da Vala de Perus e o livro Rota 66 de Caco Barcellos apontaram isso. Os crimes sexuais cometidos na rabeira dessa onda maior de violência social e racial, tortura e constrangimentos nunca entraram nas estatísticas (relatos do movimento de mulheres do Rio de Janeiro que ouvi há poucos dias durante audiência da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência Contra a Mulher dão conta desses mesmos crimes nas favelas “pacificadas” pelo Estado).

A ausência de dados na minha pesquisa revela ainda algo mais grave. Como definir o desinteresse de pesquisar sobre mulheres negras no Brasil no período de 1964 a 1885? Para não dizer que não há pesquisa nessa área,  encontrei UMA pesquisa, de Karin Sant’ Anna Kössling na USP em 2007 sobre As Lutas Anti-Racistas de Afro-descendentes sob Vigilância doi DEOSP/SP.

Por fim, deixo um trecho da obra Fala Crioulo, de Haroldo Costa, onde o autor alertava: “cada vez que há um endurecimento, um fechamento político, o negro é atingido diretamente porque todas as suas reivindicações particulares, a exposição de suas ânsias, a valorização de sua história, desde que não sejam feitas segundo os ditames oficiais, cheiram à contestação subversiva”. 

Onde estavam as mulheres negras da ditadura militar? No mesmo lugar de hoje, renegadas à história e sem acesso aos avanços da ciência e da “modernidade”, relegadas a segundo plano inclusive dentro da esquerda e do movimento feminista, mas resistindo.

Sobre Niara de Oliveira

ardida como pimenta com limão! marginal, chaaaaaaata, comunista, libertária, biscate feminista, amante do cinema, "meio intelectual meio de esquerda", xavante, mãe do Calvin, gaúcha de Satolep, avulsa no mundo. Ver todos os artigos de Niara de Oliveira

16 respostas para “Onde estavam as mulheres negras na ditadura militar?

  • Gilson Moura Henrique Junior

    Basicão do posto: A ausência de infos diz mais do que a presença de infos, parcas. Existe um hiato na pesquisa histórica? talvez, mas talvez pro existir um hiato na documentação que qualificava a resistência dos e das de pele preta, que com certeza havia como política ou não. Sem contar nas inúmeras leituras possíveis a respeito da repressão política ser vista como criminal e nas resistências do mundo do samba, do mundo soul, do mundo artístico, ligadas diretamente à luta-antiracista e anti-ditadura, como também na luta anti-machista, não serem identificadas junto com a resistência “major” dos comunistas organizados. Será que ai não tem também uma leitura enviesada de quem vê aluta do Val-Palmares e não vê a luta da rapaziada da pele preta em fazer seus baile,s seus black powers, cantarem Xica da Silva, sambar até o sol raiar cantando samba enredo sobre a ditadura?

    Belo texto e nele tá tudo o que coloquei ai em cima, só quis encher mais o recheio.

  • Niara de Oliveira

    Era isso, Gilson, a tradução do post. A falta de informações e de pesquisa diz mais sobre o país do que exatamente sobre a luta dos negros e negras (na ditadura ou fora dela), e em não tendo informação não quis exercitar muito a achologia para além daquilo que já sabemos. E, claro, a ausência de infos diz muito sobre a esquerda da época e seus dirigentes, o que infelizmente não mudou muito.

  • Anivaldo Padilha

    Niara. Gostei muito do texto. Creio que há, pelo menos, três problemas relativos à ausência de registros sobre a participação dos negros (e das negras em particular) na luta contra a ditadura. 1) Praticamente todas as análises feitas pela esquerda eram baseadas no recorte de classes sociais e todos os outros aspectos da luta eram subordinados a essa visão, apesar de que teoricamente as esquerdas já tivessem tratado da questão racial (Florestan Fernandes, Octávio Ianni e outros). Não só a luta contra o racismo mas também a luta feminista contra o machismo foi vítima dessa visão. Qualquer luta específica era vista como fator de desvio do objetivo principal que era derrotar a ditadura; 2) grande parte dos negros/as que conheci e que participavam da luta aceitava essa análise; 3) A esquerda tinha dificuldade de compreender que os movimentos culturais eram uma forma específica de luta e tinham seu valor político (Solano Trindade e Abdias Nascimento que o digam).
    Conheci vários companheiros de luta negros tanto na militância quanto na prisão. Infelizmente, nenhum deles se apresentava como militante negro. Não sei dizer se por “falta de consciência” ou porque o ambiente dogmático “classista” não permitia. O fato é que a luta contra o racismo só ganhou força dentro e fora das esquerdas quando os negros conseguiram se organizar e dirigir suas próprias lutas. Acho que o mesmo vale para as mulheres e, em anos mais recentes, para a comunidade LGBT.

    Quero mencionar que pelo menos dois dos mortos e desaparecidos na guerrilha do Araguaia eram negros. O Oswaldão e a Elenira, esta última minha colega do curso de ciências sociais na USP. É sintomático que quase nunca são identificados como negros.

    A ausência de registros e de textos sobre a participação dos negros na luta contra a ditadura é uma lacuna que precisa ser preenchida. Espero que textos como o seu possam inspirar os pesquisadores a buscar as respostas que ainda não temos.

  • Charô

    Querida Niara, sua contribuição foi perfeita por salientar essa reveladora ausência de dados. Seu post é um importante e oportuno alerta para que esse momento, da ditadura, seja estudado de uma perspectiva étnico-racial através do trabalho de historiadores, jornalistas, blogueiros e cientistas sociais. Parabéns e um enorme obrigada!

  • vilmaneres

    Saudações Niara!

    Gostei do seu texto, mas com certeza, as melhores informações, que tratam da participação das mulheres negras durante o regime militar, serão dadas por elas mesmas, muito por conta da censura que se instaurou à época. Márcia Guena é também jornalista e discorre em sua tese de doutorado acerca da participação/invisibilidade do homem e da mulher negra durante os “anos de chumbo”. Já compartilhei o link do seu texto com ela, acredito que trocarão figurinhas.

    Abraços

  • Rosalia de Oliveira Lemos

    Muito interessante sua análise. No entanto devido às condições precárias das vidas das mulheres negras, a maioria estava nas suas favelas lutando contra a violência policial e o roubo nas contas das Comissões de Luz e Água.
    Fui moradora de uma favela, Morro do Andaraí e, em 1974 era comum, os “Boinas Pretas”, polícia militar do RJ descerem a favela batendo em todo mundo. Ficávamos indignadas com isso.
    Em 1978 já militava no movimento negro… em 80 no feminismo
    Algumas de nós entraram no PT no início de 1981. Concomitantemente, começamos a movimentação para criar a Associação de Moradores do Morro do Andaraí. Veja… nossa luta estava associada às coisas concretas.. água luz, creche e esgoto.
    Em 1982 entrei na faculdade de química da UFF, e tive conhecimento da luta de Fernando Santa Cruz, que foi morto pela ditadura militar e o DCE foi queimado. Fiz parte do Grupod e Trabalhos André Rebouças e entrei para o Diretório Acadêmico.. mas sempre ouvia dizer que tinha gente infiltrada da polícia na UFF.
    Lembrava a minha infância, desde criança minha mãe falava que era proibido reclamar da Voz do Brasil… que parecia algo divino… poderoso… quando começava a transmissão no rádio.. falávamos à época.. ” ih lá vem a voz do abacaxí”.. isso em 1965″.
    Bem, voltando à questão principal: Soube pelo meu amigo Januário Garcia, que durante uma passeata em 1974, Lélia Gonzàlez, militante negra do RJ – do IPCN e MNU-, guardou um filme das fotos da miifestação, em sua calcinha na escadaria da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, pois a censura estava atrás dos registro do evento, para incriminar os militantes.
    É interessante notar, que no feminismo existia pouca perseguição dos censores… Talvez fosse por causa do sexismo, uma vez que todos os censores tinham esposass e filhas… sic.. suposição ou que muitas feministas eram filhas dos generais!
    Lembrando ainda do Morro do Andaraí, nas eleições de 1982 era grande a perseguição, quando pintávamos os muros usando as telas feitas com radiografias.. a polícia era implacável. Prendia mesmo!
    Em 81 foi assassinado um morador do Morro e o policial civil, não foi á julgamento… isso é uma dor do período da ditadura, uma violência que teve que ser silenciada.
    Concluindo, sofremos muito mais uma violência simbólica, devido à falta de acesso aos equipamentos sociais, violência no direito de ir e vir que foi cerceado pela atuação policial e a violência institucional, uma vez que erámos consideradas substratos humanos e tratadas como pessoas de quinta categoria.
    Parabéns pela sua pesquisa.

    Rosalia de Oliveira Lemos
    Doutoranda em Política Social UFF
    Professora do IFRJ
    cel: 9997-9202

  • Niara de Oliveira

    Oi, Anivaldo. Imensa satisfação, me sinto honrada pela leitura e comentário. Sim, de fato tens razão sobre as considerações a respeito do quão dogmática era a esquerda durante a ditadura. Eu, como militante de esquerda hoje por mais que leia e me informe não me atrevo a criticar decisões, opções, caminhos tomados porque não faço ideia do que era ser comunista, esquerdista naquele período, não tenho a dimensão histórica da conjuntura para fazer qualquer análise e me faltam muitos elementos e conhecimento para tanto. Tu podes e tens o dever de fazer a crítica (acho eu, aqui com meus botões) e te agradeço por compartilhá-la aqui.
    Claro que conheço a história do Oswaldão e da Elenira. Fato curioso é que durante a última blogagem #desarquivandoBR, nos dias do aniversário do golpe (31/03 e 1º/04) combinamos de trocar nossas fotos nas redes sociais por fotos de desaparecidos e escolhi justo a foto da Elenira. A ação era para dizer que a tentativa dos militares e da direita em apagar a memória desses militantes não teria tido êxito completo, porque estamos aqui para lembrá-los.
    Um abraço.

  • Niara de Oliveira

    Infelizmente só estou sabendo da existência de uma militante negra que tenha sobrevivido à ditadura agora, através de ti. Muito obrigada, Vilma. Se ela fizer contato, certamente ele renderá frutos.
    Um abraço. 🙂

  • Niara de Oliveira

    Então, Rosalia. Justamente fiz questão de terminar o texto respondendo a minha própria pergunta, mesmo sem essa riqueza de detalhes que apresentas agora. Te agradeço imensamente pelo comentário e presença aqui.
    Um beijo.

  • Renata Lins (@repimlins)

    muito bom, o post e a caixinha de comentários. Ótimo pontapé inicial. Beijos, Niara!

  • Anna

    Delicioso seu texto e muuito pertinente suas colocações….Vc daria uma contribuição imensa à nossa história se mantivesse essa sua curiosidade e fosse à campo….história oral seria imprescindível, acredito que exista muita história a ser contada por moradores mais velhos nas periferias de nossas cidades, trabalho dificil mas com certeza com resultados reveladores.

  • Niara de Oliveira

    Obrigada, Anna. Um beijo. 🙂

  • Pedalante

    […] Este texto faz parte da Blogagem Coletiva Mulheres Negras 2012. [ e tb Post participante da VII Blogagem Coletiva #desarquivandoBR ] […]

  • Beatriz

    Muito bom seu texto e mais rico ficou com a contribuição dos (as)companheiros que comentaram. Parabéns a todos(as).

  • Tauana

    Olá. Eu estou fazendo uma tese intitulada: A participação política das mulheres negras durante a ditadura militar. Estou também buscando informações e pessoas interessadas em discutir sobre essa temática. Obrigada pele texto.

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