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A greve de fome como instrumento de luta

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Era março de 2001, e iniciava o segundo mandato de Inguelore de Souza à frente da reitoria da Universidade Federal de Pelotas. Logo depois do golpe que a reitora deu no Conselho Universitário para que não houvesse consulta à comunidade, no processo de escolha de seu sucessor, e face aos arbitrários atos de sucateamento da assistência estudantil (bolsas de auxílio, restaurante universitário, casa do estudante e transporte – que ineditamente passou a ser cobrado), os estudantes entraram em greve. Eles foram acompanhados e apoiados pelos servidores e docentes (os docentes entravam e saíam da greve semanalmente, em função da correlação de forças na categoria). Acabou se constituindo uma greve da comunidade universitária da UFPel.
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Eu era jornalista da Seção Sindical da Associação dos Docentes da UFPel e cedida ao Comando de Greve. Foi uma longa greve e apesar dos motivos serem justos e do movimento estar muitíssimo bem organizado naquele período, o tempo foi passando e o impasse não se resolvia. A reitoria não cedia um milímetro e nem o movimento, e as interferências do MEC só agravavam o quadro. Veio e desgaste e a necessidade de radicalizar ações para dar sustentação ao movimento. Era quase final de abril.

Centro de Integração do Mercosul, prédio da UFPel e local da greve de fome dos estudantes em 2001

Nesse momento, um grupo de estudantes me chamou para uma reunião meio clandestina no Sindicato dos Bancários de Pelotas. Lá me informaram que haviam decidido fazer uma greve de fome (o tal ato radicalizado). Fiquei assustada e fui avisada que no dia seguinte, pela manhã, eles iriam se acorrentar aos pilares do saguão do Centro de Integração do Mercosul (prédio da universidade localizado na Andrade Neves esquina Lobo da Costa). Depois que eles saíssem para o ato, em meia hora eu deveria ligar para a imprensa e comunicar o início da greve de fome. Isto tudo sem o conhecimento prévio da direção da ADUFPel – “meus chefes” – e nem do Comando de Greve.

Cassiano, Mana e Giovani no saguão do C.I. Mercosul

A reitoria não cedeu em nada e eles saíram da greve de fome após oito dias por intervenção médica. A greve da comunidade acabou algum tempo depois. Da minha parte sobrou uma amizade um pouco à distância com os três estudantes que se sacrificaram por aquele movimento: Giovani Girolometto, Cassiano Gasperin e Mana Gotardo. Dos três, mantenho contato mais frequente com a Mana.
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Quando o dissidente e preso político (alguns dizem que era um criminoso comum) cubano Orlando Zapata Tamayo morreu após 85 dias de greve de fome, em 23 de fevereiro deste ano, travei via tuíter um debate com o Raphael Tsavkko do Blog do Tsavkko sobre a validade da greve de fome enquanto ferramenta de luta.
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Neste debate (que pode ser conferido no início do artigo do Raphael sobre o tema), discordamos e combinamos escrever, cada um em seu blog, um artigo defendendo nossos pontos de vista. O artigo de Tsavkko foi antecipado em face de uma declaração desastrada (neste ponto concordamos) do presidente Lula logo depois de sua chegada de Cuba. Para quem não se lembra do episódio, Lula estava em Cuba no dia do funeral de Zapata e foi muito questionado pela grande imprensa sobre o fato.
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Tendo um caso de greve de fome tão próximo a mim, obviamente fui direto à fonte e entrevistei informalmente a Mana para subsidiar o artigo que escreveria. Infelizmente não tive tempo e nem inspiração para escrever o meu artigo. Nem poderia. Tudo já havia sido dito na entrevista/conversa. Melhor do que ler um monólogo meu sobre o tema, é ler essa conversa, principalmente a opinião de uma ex-grevista de fome sobre o seu uso como ferramenta de luta. Aproveitem.
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Mana Gotardo e Giovani Girolometto, amigos até hoje

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Como vocês chegaram à decisão de que a greve de fome era uma alternativa de luta naquele contexto?
Nós tínhamos muitas pessoas envolvidas e se aproximando do processo e elas estavam radicalizando cada vez mais, e quanto mais acirrado o movimento ficava, mais gente vinha. Por isso a greve de fome veio em um momento que nós precisávamos de mais “gás” e ocupar mais espaço na mídia, pois as ocupações e atos estavam perdendo esse espaço e precisávamos de um fato novo. Essas foram basicamente as questões.
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Como foi a decisão sobre quais pessoas fariam a greve de fome?
Havia várias pessoas que iriam participar da greve que depois por razões diversas não puderam. Queríamos pessoas que se dispusessem a chamar atenção para o movimento, a greve de fome era para isso. Não tínhamos interesse em projetar nomes e sim insistir na divulgação do objetivo do movimento que na época era a garantia de políticas de assistência estudantil. Tanto que sempre que a imprensa falava no nosso estado de saúde, tentávamos puxar de volta para a causa/razão de estarmos ali.
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Se temos o objetivo de que todas as pessoas tenham direito a alimentação digna, fazer greve de fome não é contraditório? Se sacrificar a esse ponto não é estranho?
Uma coisa é lutar para que todos tenham direito a se alimentar dignamente e tudo mais. Outra coisa é uma opção de privação. Pode até parecer contraditório e literalmente é. Mas não acho que seja quando isso é entendido como uma forma de luta. E veja: Quando eu entrei na greve de fome, apesar da minha compreensão, eu nunca imaginei morrer ali. O risco era medido. Resistiria enquanto entendesse que meu organismo aguentaria. Ao menos era o que eu acreditava. Estávamos acompanhados de um médico que nos dizia insistentemente que deveríamos de imediato voltar a comer. Mas também íamos sentindo a evolução desse ato de não comer, tanto que quando começamos a perceber os limites mais claros disso, saímos. Acredito que podemos ficar sem comer, sem prejuízo nenhum ao organismo além de sentir fome. E quem sabe o ideal era que nem fosse assim.
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Lá, em meio à greve de fome, como vocês avaliavam a situação? Tinha esse espaço? O restante da coordenação do movimento discutia com vocês, ou era decisão pessoal?
Era uma coisa um pouco difícil, porque ouvíamos de tudo.  Desde as pessoas que repudiavam o que estávamos fazendo até as mais comovidas. Então a situação emocional era bastante complicada. Tanto a coordenação do movimento ia tomando decisões levando em conta nosso estado, assim como ficávamos sabendo o que se passava fora e discutíamos junto. A nossa saída foi uma decisão da coordenação, porque o movimento estava sendo absorvido pela greve de fome em si e precisávamos voltar pra questão do ponto inicial. Por isso a greve acabou. Eu saí um dia antes.
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Continuas acreditando que greve de fome, em momentos que a luta (qualquer uma) necessitar ser radicalizada, é uma ação válida?
Sim. Mas acho que ela é perigosa, porque tende a enfatizar mais as pessoas e menos as causas. Chama demais os holofotes para o sacrifício pessoal e a luta em si permanece desfocada. Por isso só acho que ela seja justa na medida em que de fato mantém o elemento motor mais em evidência que a pessoa que esta se “sacrificando” por isso. É uma opção da pessoa estar nessa luta. Mas não faz por si, faz pela causa, pelo movimento. Eu às vezes me constrangia por ocupar uma atenção que não queria. Não tenho uma opinião formada em relação a levá-la ate as últimas consequências.
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Como no caso dos cubanos…
Eu não levaria e desaconselharia qualquer um a fazer. Acredito que cada um tenha as suas motivações, mas acho que as pessoas são mais importantes vivas e na luta, do que mortas para virarem quadros de paredes. Acho que a greve de fome é valida como forma de luta, mas não quando pode levar a morte.  Não sei se poderíamos comparar, mas é algo tipo os “homens bombas”.
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Farias de novo?

Solaine (Mana) Gotardo, 31 anos, é licenciada em filosofia e mora em Pelotas

Faria. Desde que me sentisse suficientemente convencida de uma causa. Mas insisto que não morreria ali. É válida apenas como ferramenta. As comparações são um tanto extremas, mas digo que são atitudes mais radicalizadas. O que quero dizer com ferramenta é que pode ser um ato, uma ocupação ou uma greve de fome. Existem níveis de radicalidade.

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Tu te sacrificarias, te privarias pela luta, mas não vês sentido em morrer por isso…
Isso. Nas condições de hoje não morreria. Os militantes que foram à luta armada na ditadura e morreram, não foi desse modo. Até porque são causas pontuais. Alguns morreram e se sacrificaram para não entregar a vida de seus camaradas. E isso, sim, seria capaz. Ao menos, gostaria. Mas volto a dizer: Acho que as pessoas são importantes vivas nesse momento. No caso da guerrilha, ninguém pretendia morrer. Foram assassinados. Eles apenas não deixaram de lutar por medo de serem mortos. Sabiam do risco. Mas não era o objetivo, eram as condições. Acho a greve de fome uma forma legitima de luta. Mas ela não precisa ser levada ao último estágio para ter sua eficácia comprovada. Aliás, na maior parte das vezes não tem eficácia momentânea.
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Como foi que decidisse participar da greve de fome? Motivo, objetivo, estado de consciência…
Eu estava bastante envolvida há tempos com o movimento e quando surgiu a ideia, logo disse que me disporia. Não pensei muito nisso. Nós queríamos muito que o movimento fosse a frente e acreditávamos que a greve de fome fosse um meio. A privação consciente de alimento por alguns dias, sabendo que é um período finito, acho até válida. O fanatismo de achar que morrer pela causa vai alterar algo é que acho grotesco, estúpido. Ainda mais numa luta pontual. Num movimento mais amplo, talvez. Mas tem outras formas.
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Eu tinha dúvidas na época sobre o estágio de consciência de vocês no processo. Na hora em que vocês me comunicaram (e ainda pedindo segredo), confesso, fiquei atônita. Se tivessem me perguntado, eu diria “vão inventar outro jeito de radicalizar o movimento”…
Sabe que me dei conta de uma coisa? Acho que nunca tinha conversado sobre esse assunto desse modo. Acho que fiquei com alguns problemas em relação àquilo. Principalmente porque outros setores do movimento (outras forças/tendências) diziam que nós queríamos nos projetar com nossa privação. Projeção enquanto pessoas.
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Vocês avaliaram, entre vocês apenas, o ato, resultado, etc.?
Evitava falar pra não ficar assumindo essa coisa da greve fazer parecer as pessoas mais importantes do que o processo. Não lembro se avaliamos, Niara. Mas como eu, o Cassiano e o Giovani nos dávamos muito bem (nos damos ainda), sempre abríamos muito o jogo lá dentro (da greve). Sempre falávamos muito sobre o que estávamos sentindo. Porque nós, de fato, não sabíamos que implicações para a nossa saúde aquilo teria e também nem que tipo de sintomas eram normais ou não. Então, mesmo em condições temporais de privação comuns, nós tínhamos sentimentos diferentes, e por isso falávamos sempre tudo o que sentíamos. No fundo, sempre houve um pouco de medo. Nós não sabíamos mesmo o que poderia dar.
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Medo de ficarem com sequelas? Ou de alguém correr realmente risco de morte?
Nessas horas surgem várias teses. O Arílson (Arílson Cardoso, médico sanitarista), que nos acompanhou, foi fantástico nisso. Nos examinava todos os dias e ia dizendo mais ou menos que tipos de sintomas a gente deveria estar sentido. Na verdade os sintomas são mais físicos que mentais. Os efeitos psicológicos vêm do contexto porque sabíamos que tinha um movimento envolvido.
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Isso deve ter sido fundamental para tranquilizar vocês, dar mais ou menos segurança…
Claro. O Arílson nos dizia, individualmente, como reagir aos sintomas. Cada corpo reage de um jeito. Por exemplo, ele dizia que o Giovani tendia a ser o mais fraco fisicamente, não só pela magreza dele, mas pelo conjunto. E que, no geral, mulher resiste melhor física e emocionalmente. Ele mesmo dizia que existem poucos estudos sobre esse assunto e portanto, passam a ser quase que hipóteses. Mas nos dizia que era mais ou menos por ali e reafirmava que, como médico, a orientação era para que nos alimentássemos.
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* A greve de fome durou ao todo oito dias e terminou no dia 2 de maio.
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* Giovani Girolometto é veterinário e Cassiano Gasperin, arquiteto.
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Atualmente o tema volta à tona com a greve de fome do cineasta iraniano Jafar Panahi, preso político do governo de Mahmoud Ahmadinejad durante 50 dias. Jafar Panahi (O Círculo e O Balão Branco), que esteve diversas vezes no Brasil,  foi libertado nesta terça-feira, 25 de maio. Ele estava em greve de fome há uma semana e teve em seu favor cartas ao governo e justiça iranianos pedindo sua libertação assinadas por Martin Scorsese, Steven Spielberg, Francis Ford Coppola, Robert de Niro e Robert Redford, além de uma fiança de U$ 200 mil e muitos protestos durante o Festival de Cannes.
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Atualização 26/05, 13h30: Agradeço ao Giovani Girolometto que enviou a foto deles no saguão do C.I. Mercosul durante a greve.
NOTA: Se alguém tiver fotos da greve de 2001 na UFPel, peço que envie para ilustrar esse post.
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