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Entrevista (atrasada) com Ivan Lins

Tive o prazer, a sorte e a honra de entrevistar Ivan Lins em Pelotas logo após seu show no Theatro Guarany em 16 de novembro de 2010. Ivan iniciou em Pelotas a turnê Perfil para comemorar seus 40 anos de carreira. A entrevista foi tão bacana, mas tão bacana, e o Ivan foi tão gentil e tão disponível, respondendo todas as minhas perguntas que não sentia necessidade de publicá-la. Fiquei tão satisfeita com essa entrevista que a guardei durante mais de um ano só para mim. Pensem que o cara tem quatro décadas de carreira e entrevistas, reconhecimento no Brasil e consagração no exterior e em nenhum momento emitiu opinião sobre minhas perguntas ou se mostrou impaciente. Ivan é um artista ímpar e um ser humano simples e humilde, me respondeu olhando nos olhos (ai ai…), concentrado nas perguntas e no papo.

Não me acho grande coisa como entrevistadora — sou do tipo que fica interrompendo as respostas com pitacos, chata mesmo –, estava morrendo de dor de cabeça, esperei até a última tia velha aflita tirar foto com ele numa fila interminável de fãs no camarim após o show, cheguei a me perder no meio da entrevista (quem não se perderia diante daquele sorriso há apenas meio metro de distância?) e mesmo assim ele foi paciente e atencioso. Um gentleman, comigo e com todos. Quem nunca se apaixonou pelo entrevistado e guardou a entrevista só para si, né? Jornalista doida é isso. 😛

Falamos de música, política (e lembrem-se sempre que a entrevista foi feita em novembro de 2010), sobre o desafio de compor durante a ditadura militar, sobre o Ministério da Cultura, futebol… Confiram.

percebam a distância e avaliem o meu "nervosismo"... meu rosto queimava.

Tem diferença fazer sucesso no Brasil e no exterior?
Existe uma certa diferença pelo fato de que o sucesso que se faz no seu país é um encontro com suas raízes, com os motivos pelos quais levaram você a se dedicar tanto à sua arte. Sou filho desse país, tudo que eu sei, tudo que sou eu devo a essa terra, a esse povo, a todas as pessoas com quem eu tive a oportunidade de conviver, com todo o carinho que eu recebi através dos meus shows. Esse sucesso para mim é o melhor de todos. O sucesso que a gente faz lá fora a gente simplesmente está levando o nosso país para lá, eu canto meu país lá fora, eu sempre levo o que há de melhor daqui para falar lá, porque meu país é um lugar especial, de um povo muito especial. O sucesso que a gente faz lá fora é diferente, não sou eu sozinho, sou eu e o meu povo todo.

Em todas as profissões tem aquelas coisas que fazemos com mais prazer e outras que fazemos pela obrigação no exercício do ofício. O que mais te dá prazer na tua profissão?
É a liberdade que eu tenho para desenvolver a minha arte. Eu criei o meu próprio espaço e faço com que esse espaço seja mais amplo possível e ao mesmo tempo eu não fecho nem portas e nem janelas. Estou sempre aberto a tudo que possa vir. A beleza não é um privilégio meu, é de todas as pessoas. Todos têm um pouco de beleza dentro delas…
Todos têm a capacidade de ver o belo…
Isso… Eu sou muito fã dos meus colegas e me permito deixar influenciar por eles, e trabalho tanto com os mais velhos quanto com os mais jovens. Talvez esse seja o segredo. Eu me permito muito que os jovens me contaminem.

Ivan Lins sempre convida para seus shows um novo talento e em Pelotas o escolhido foi Leandro Maia, que além de mostrar uma composição sua, cantou "Bilhete" com Ivan na hora do bis

(Conheçam o trabalho do talentoso Leandro Maia em seu blog Palavreio e entendam porquê ele foi apadrinhado por Ivan Lins)

Falaste em liberdade de criação. Começastes numa fase difícil. Como foi criar e compor durante a ditadura,quando era preciso andar na corda bamba para não ser preso ou não ser censurado?
Foi um exercício de criatividade. Eu até acho engraçado isso, é um paradoxo. Assim como dizem que a dor é cafetina da arte, os momentos difíceis são também os momentos em que arte tem que se desenvolver com mais criatividade.
Tirar leite de pedra…
Exatamente. Os anos 60 e 70 foram o auge da criatividade da música no Brasil.

Gostas de futebol. Tricolor, né?
Eu sou tricolor, lá e aqui (infelizmente para os colorados).
(Tá tudo bem, não sou colorada…)
Até que ponto és torcedor? Vai a estádio, assiste jogo na televisão…?
Vou a estádio, assisto na tevê, fico nervoso, sofro, xingo.
Vai ser campeão?
Olha, não sei. Não consigo prever. Não acho que o Fluminense tenha o melhor time. Tem um grande técnico (Muricy Ramalho), mas não tem o melhor time. Acho que tem times melhores jogando. O time do Grêmio é muito bom, o time do Internacional é um time muito bom. Eu acho que os dois são melhores que o do Fluminense, apesar de estarem mais atrás na tabela. Sou um apreciador do bom futebol, gosto do espetáculo. Meu time não oferece um grande espetáculo nos jogos, tem ganho inclusive sem fazer boas apresentações, eu tenho gostado mais do time do Botafogo por exemplo. O time do Santos também tem oferecido um melhor espetáculo. Gostaria muito que o Fluminense fosse campeão, mas não sei se vai conseguir.

(para a alegria de Ivan e dos tricolores cariocas o Fluminense foi o campeão brasileiro de 2010)

Teu nome foi incluído numa carta de artistas em apoio a José Serra e depois teve um desmentido. Como foi isso? (o segundo turno das eleições de 2010 tinha acabado de acontecer)
Foi oportunismo do pessoal que trabalhava para o Serra, assim como fizeram para a Dilma também. Incluíram meu nome numa lista de apoio à Dilma ainda no primeiro turno. Mandei desmentir e disse que ia votar na Marina. Eles tiraram, tudo certo. Depois no segundo turno tava quieto, não ia votar mais em ninguém, eu anulei meu voto no segundo turno porque os dois candidatos deveriam se chamar Pinóquio e Pinóquia porque estavam mentindo demais pro meu gosto e eu não gosto de gente mentirosa, é uma das coisas que mais detesto. Então, anulei meu voto. Mas quando apareceu meu nome lá (lista de apoio à Serra) eu fiquei passado, muito passado. Não gosto do Serra, nunca gostei dele e se me perguntassem ‘de quem você gosta menos’ responderia Serra.

Como foi ter um colega como ministro da Cultura? Como ficou a música no período em que Gilberto Gil foi ministro?
Eu acho que a gestão do Gil foi fundamental para que a classe criasse mecanismos próprios para poder defender seus direitos e isso só começou com Gil no ministério, apesar do monte de críticas que fizeram a ele e que particularmente achei muito injustas, porque o Ministério da Cultura não é o ministério da música, o que falta é uma secretaria da música e essa é uma reivindicação, uma questão seríssima. De todas as artes a música é a que tem o maior poder de alcance, inclusive internacional, e por isso a necessidade de uma secretaria especial, mas isso não quer dizer que ela tenha ou vá ter prioridade de verbas, pelo contrário, porque eu acho que a cultura começa com a preservação das raízes, da memória, do patrimônio. Não existe um país se não tiver sua memória preservada. Esse é o grande trabalho que precisa ser feito no Brasil. O Brasil é um país que se distrair perde a memória fácil, diferentemente dos países da Europa. Nós tivemos muito do nosso patrimônio dilapidado, destruído dentro das grandes cidades e eu acho que esse é um trabalho que tem que ser feito e exige um investimento muito alto. Esse foi um dos trabalhos que foram feitos, principalmente a partir de Gil e do Juca Ferreira, que é o grande responsável por essa área. Juca Ferreira é o homem que está fazendo o melhor trabalhado de toda a história de preservação de memória, de patrimônio e de folclore desse país. O Brasil tem manifestações folclóricas que estão desaparecendo e as novas gerações não estão acompanhando, e o grande esforço para que essas manifestações se preservem foram iniciadas a partir do Gil. Mas essas iniciativas não chegam ao grande público, não chegam aos interessados. Cada um olha muito pro seu próprio nariz… os músicos, o pessoal do teatro, do cinema… Todo mundo só querendo ver o seu lado, mas ninguém pensou que antes disso o país precisa ter suas raízes e essências preservadas. Se eu fosse ministro também me dedicaria 80% a preservação do patrimônio e 20% ao resto. Foi isso que o Gil e o Juca fizeram e apanharam de todo mundo. Eu sou um dos grandes defensores do trabalho feito e se o Juca Ferreira puder ficar no próximo governo sou totalmente favorável.

(Infelizmente, Juca Ferreira não ficou no Ministério da Cultura)

Estás sempre compondo, é um hábito?
Eu sou muito compulsivo para criar, mas ultimamente não tenho tido é tempo. Tenho trabalhado demais e é uma consequência da crise financeira e de mercado da música brasileira. As grandes gravadoras acabaram, a pirataria de uma certa forma acabou com um lado da indústria, o outro lado, da internet com os downloads (que é a chamada pirataria informal) prejudica muito. Essa principalmente me prejudica bastante.
Não és tão popular para vender em camelô…
É… Exatamente. Então hoje eu sou obrigado a trabalhar mais para pagar minhas contas e não tenho tido muito tempo para compor, infelizmente.

Gostas de viajar pelo interior, conhecer o país nessa rotina de shows?
Adoro viajar, adoro conhecer… Adoro conhecer a arquitetura e a história, vou a museus…
Essa é uma questão importante para ti, da preservação do patrimônio…
Tenho muita vontade de fazer um trabalho pelo Brasil, se alguém financiasse, fazendo documentários, criar movimentos de preservação. Eu sou um entusiasta do folclore brasileiro, da preservação das nossas raízes. Esse país é incrível! E olha que eu conheço só 20% dele.

Se fosses te definir… Quem é Ivan Lins?
Eu sou um cidadão brasileiro, um bom cidadão brasileiro, compromissado com a beleza. Tenho um compromisso com a beleza no seu sentido real, amplo, interior. E por amar demais esse país eu me indigno e sou muito crítico. Eu sou um brasileiro que cobra e ama muito.

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(Fotos Murilo Paulsen, Portal VIP Pelotas)

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PS: Agradecimento especial aos queridos Alex e Martha Fonseca, sem os quais não teria chegado nem perto do Ivan Lins.

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Entrevista com Latuff

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Carlos Latuff

Há mais ou menos duas semanas entrevistei o cartunista Carlos Latuff, sempre presente aqui no Pimenta com seus desenhos e cartuns pró-palestinos e direitos humanos.

A entrevista foi feita em dois momentos. Um via MSN, numa madrugada de sábado, logo em seguida ao ataque israelense à Flotilla da Liberdade no mar de Gaza. Após duas horas e meia de entrevista, Latuff ainda teve energia para fazer esse cartun (abaixo) sobre o barco irlandês Rachel Corrie, que se aproximava de Gaza e também foi interceptado por Israel – dessa vez sem violência. O desenho foi inspirado no cartaz do filme Tubarão, de Steven Spielberg – me disse ele .
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A segunda parte foi feita num domingo à noite, via tuíter, onde eu apenas fui controlando o tempo e acompanhando as perguntas que foram feitas durante uma hora e meia. Não moderei a entrevista nem censurei questões. Os tuíters encaminhavam suas perguntas direto ao Latuff, que retuitava (repetia) a pergunta e a respodia em seguida. Mais de vinte internautas participaram e foram tantas as perguntas que quando encerramos o prazo para fazer questionamentos, Latuff ainda ficou respondendo por mais meia hora. Dedicado e disciplinado, respondeu a todos.
O resultado dessa verdadeira sabatina virtual está publicado no site Outras Palavras. Vejam lá! Minha intenção foi conhecer melhor quem era a pessoa por trás do traço, do desenho, e ao mesmo tempo apresentá-lo a quem acompanha e admira o seu trabalho. As duas partes foram publicadas na íntegra.
Espero que gostem. Eu gostei muito. 🙂
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A greve de fome como instrumento de luta

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Era março de 2001, e iniciava o segundo mandato de Inguelore de Souza à frente da reitoria da Universidade Federal de Pelotas. Logo depois do golpe que a reitora deu no Conselho Universitário para que não houvesse consulta à comunidade, no processo de escolha de seu sucessor, e face aos arbitrários atos de sucateamento da assistência estudantil (bolsas de auxílio, restaurante universitário, casa do estudante e transporte – que ineditamente passou a ser cobrado), os estudantes entraram em greve. Eles foram acompanhados e apoiados pelos servidores e docentes (os docentes entravam e saíam da greve semanalmente, em função da correlação de forças na categoria). Acabou se constituindo uma greve da comunidade universitária da UFPel.
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Eu era jornalista da Seção Sindical da Associação dos Docentes da UFPel e cedida ao Comando de Greve. Foi uma longa greve e apesar dos motivos serem justos e do movimento estar muitíssimo bem organizado naquele período, o tempo foi passando e o impasse não se resolvia. A reitoria não cedia um milímetro e nem o movimento, e as interferências do MEC só agravavam o quadro. Veio e desgaste e a necessidade de radicalizar ações para dar sustentação ao movimento. Era quase final de abril.

Centro de Integração do Mercosul, prédio da UFPel e local da greve de fome dos estudantes em 2001

Nesse momento, um grupo de estudantes me chamou para uma reunião meio clandestina no Sindicato dos Bancários de Pelotas. Lá me informaram que haviam decidido fazer uma greve de fome (o tal ato radicalizado). Fiquei assustada e fui avisada que no dia seguinte, pela manhã, eles iriam se acorrentar aos pilares do saguão do Centro de Integração do Mercosul (prédio da universidade localizado na Andrade Neves esquina Lobo da Costa). Depois que eles saíssem para o ato, em meia hora eu deveria ligar para a imprensa e comunicar o início da greve de fome. Isto tudo sem o conhecimento prévio da direção da ADUFPel – “meus chefes” – e nem do Comando de Greve.

Cassiano, Mana e Giovani no saguão do C.I. Mercosul

A reitoria não cedeu em nada e eles saíram da greve de fome após oito dias por intervenção médica. A greve da comunidade acabou algum tempo depois. Da minha parte sobrou uma amizade um pouco à distância com os três estudantes que se sacrificaram por aquele movimento: Giovani Girolometto, Cassiano Gasperin e Mana Gotardo. Dos três, mantenho contato mais frequente com a Mana.
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Quando o dissidente e preso político (alguns dizem que era um criminoso comum) cubano Orlando Zapata Tamayo morreu após 85 dias de greve de fome, em 23 de fevereiro deste ano, travei via tuíter um debate com o Raphael Tsavkko do Blog do Tsavkko sobre a validade da greve de fome enquanto ferramenta de luta.
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Neste debate (que pode ser conferido no início do artigo do Raphael sobre o tema), discordamos e combinamos escrever, cada um em seu blog, um artigo defendendo nossos pontos de vista. O artigo de Tsavkko foi antecipado em face de uma declaração desastrada (neste ponto concordamos) do presidente Lula logo depois de sua chegada de Cuba. Para quem não se lembra do episódio, Lula estava em Cuba no dia do funeral de Zapata e foi muito questionado pela grande imprensa sobre o fato.
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Tendo um caso de greve de fome tão próximo a mim, obviamente fui direto à fonte e entrevistei informalmente a Mana para subsidiar o artigo que escreveria. Infelizmente não tive tempo e nem inspiração para escrever o meu artigo. Nem poderia. Tudo já havia sido dito na entrevista/conversa. Melhor do que ler um monólogo meu sobre o tema, é ler essa conversa, principalmente a opinião de uma ex-grevista de fome sobre o seu uso como ferramenta de luta. Aproveitem.
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Mana Gotardo e Giovani Girolometto, amigos até hoje

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Como vocês chegaram à decisão de que a greve de fome era uma alternativa de luta naquele contexto?
Nós tínhamos muitas pessoas envolvidas e se aproximando do processo e elas estavam radicalizando cada vez mais, e quanto mais acirrado o movimento ficava, mais gente vinha. Por isso a greve de fome veio em um momento que nós precisávamos de mais “gás” e ocupar mais espaço na mídia, pois as ocupações e atos estavam perdendo esse espaço e precisávamos de um fato novo. Essas foram basicamente as questões.
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Como foi a decisão sobre quais pessoas fariam a greve de fome?
Havia várias pessoas que iriam participar da greve que depois por razões diversas não puderam. Queríamos pessoas que se dispusessem a chamar atenção para o movimento, a greve de fome era para isso. Não tínhamos interesse em projetar nomes e sim insistir na divulgação do objetivo do movimento que na época era a garantia de políticas de assistência estudantil. Tanto que sempre que a imprensa falava no nosso estado de saúde, tentávamos puxar de volta para a causa/razão de estarmos ali.
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Se temos o objetivo de que todas as pessoas tenham direito a alimentação digna, fazer greve de fome não é contraditório? Se sacrificar a esse ponto não é estranho?
Uma coisa é lutar para que todos tenham direito a se alimentar dignamente e tudo mais. Outra coisa é uma opção de privação. Pode até parecer contraditório e literalmente é. Mas não acho que seja quando isso é entendido como uma forma de luta. E veja: Quando eu entrei na greve de fome, apesar da minha compreensão, eu nunca imaginei morrer ali. O risco era medido. Resistiria enquanto entendesse que meu organismo aguentaria. Ao menos era o que eu acreditava. Estávamos acompanhados de um médico que nos dizia insistentemente que deveríamos de imediato voltar a comer. Mas também íamos sentindo a evolução desse ato de não comer, tanto que quando começamos a perceber os limites mais claros disso, saímos. Acredito que podemos ficar sem comer, sem prejuízo nenhum ao organismo além de sentir fome. E quem sabe o ideal era que nem fosse assim.
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Lá, em meio à greve de fome, como vocês avaliavam a situação? Tinha esse espaço? O restante da coordenação do movimento discutia com vocês, ou era decisão pessoal?
Era uma coisa um pouco difícil, porque ouvíamos de tudo.  Desde as pessoas que repudiavam o que estávamos fazendo até as mais comovidas. Então a situação emocional era bastante complicada. Tanto a coordenação do movimento ia tomando decisões levando em conta nosso estado, assim como ficávamos sabendo o que se passava fora e discutíamos junto. A nossa saída foi uma decisão da coordenação, porque o movimento estava sendo absorvido pela greve de fome em si e precisávamos voltar pra questão do ponto inicial. Por isso a greve acabou. Eu saí um dia antes.
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Continuas acreditando que greve de fome, em momentos que a luta (qualquer uma) necessitar ser radicalizada, é uma ação válida?
Sim. Mas acho que ela é perigosa, porque tende a enfatizar mais as pessoas e menos as causas. Chama demais os holofotes para o sacrifício pessoal e a luta em si permanece desfocada. Por isso só acho que ela seja justa na medida em que de fato mantém o elemento motor mais em evidência que a pessoa que esta se “sacrificando” por isso. É uma opção da pessoa estar nessa luta. Mas não faz por si, faz pela causa, pelo movimento. Eu às vezes me constrangia por ocupar uma atenção que não queria. Não tenho uma opinião formada em relação a levá-la ate as últimas consequências.
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Como no caso dos cubanos…
Eu não levaria e desaconselharia qualquer um a fazer. Acredito que cada um tenha as suas motivações, mas acho que as pessoas são mais importantes vivas e na luta, do que mortas para virarem quadros de paredes. Acho que a greve de fome é valida como forma de luta, mas não quando pode levar a morte.  Não sei se poderíamos comparar, mas é algo tipo os “homens bombas”.
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Farias de novo?

Solaine (Mana) Gotardo, 31 anos, é licenciada em filosofia e mora em Pelotas

Faria. Desde que me sentisse suficientemente convencida de uma causa. Mas insisto que não morreria ali. É válida apenas como ferramenta. As comparações são um tanto extremas, mas digo que são atitudes mais radicalizadas. O que quero dizer com ferramenta é que pode ser um ato, uma ocupação ou uma greve de fome. Existem níveis de radicalidade.

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Tu te sacrificarias, te privarias pela luta, mas não vês sentido em morrer por isso…
Isso. Nas condições de hoje não morreria. Os militantes que foram à luta armada na ditadura e morreram, não foi desse modo. Até porque são causas pontuais. Alguns morreram e se sacrificaram para não entregar a vida de seus camaradas. E isso, sim, seria capaz. Ao menos, gostaria. Mas volto a dizer: Acho que as pessoas são importantes vivas nesse momento. No caso da guerrilha, ninguém pretendia morrer. Foram assassinados. Eles apenas não deixaram de lutar por medo de serem mortos. Sabiam do risco. Mas não era o objetivo, eram as condições. Acho a greve de fome uma forma legitima de luta. Mas ela não precisa ser levada ao último estágio para ter sua eficácia comprovada. Aliás, na maior parte das vezes não tem eficácia momentânea.
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Como foi que decidisse participar da greve de fome? Motivo, objetivo, estado de consciência…
Eu estava bastante envolvida há tempos com o movimento e quando surgiu a ideia, logo disse que me disporia. Não pensei muito nisso. Nós queríamos muito que o movimento fosse a frente e acreditávamos que a greve de fome fosse um meio. A privação consciente de alimento por alguns dias, sabendo que é um período finito, acho até válida. O fanatismo de achar que morrer pela causa vai alterar algo é que acho grotesco, estúpido. Ainda mais numa luta pontual. Num movimento mais amplo, talvez. Mas tem outras formas.
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Eu tinha dúvidas na época sobre o estágio de consciência de vocês no processo. Na hora em que vocês me comunicaram (e ainda pedindo segredo), confesso, fiquei atônita. Se tivessem me perguntado, eu diria “vão inventar outro jeito de radicalizar o movimento”…
Sabe que me dei conta de uma coisa? Acho que nunca tinha conversado sobre esse assunto desse modo. Acho que fiquei com alguns problemas em relação àquilo. Principalmente porque outros setores do movimento (outras forças/tendências) diziam que nós queríamos nos projetar com nossa privação. Projeção enquanto pessoas.
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Vocês avaliaram, entre vocês apenas, o ato, resultado, etc.?
Evitava falar pra não ficar assumindo essa coisa da greve fazer parecer as pessoas mais importantes do que o processo. Não lembro se avaliamos, Niara. Mas como eu, o Cassiano e o Giovani nos dávamos muito bem (nos damos ainda), sempre abríamos muito o jogo lá dentro (da greve). Sempre falávamos muito sobre o que estávamos sentindo. Porque nós, de fato, não sabíamos que implicações para a nossa saúde aquilo teria e também nem que tipo de sintomas eram normais ou não. Então, mesmo em condições temporais de privação comuns, nós tínhamos sentimentos diferentes, e por isso falávamos sempre tudo o que sentíamos. No fundo, sempre houve um pouco de medo. Nós não sabíamos mesmo o que poderia dar.
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Medo de ficarem com sequelas? Ou de alguém correr realmente risco de morte?
Nessas horas surgem várias teses. O Arílson (Arílson Cardoso, médico sanitarista), que nos acompanhou, foi fantástico nisso. Nos examinava todos os dias e ia dizendo mais ou menos que tipos de sintomas a gente deveria estar sentido. Na verdade os sintomas são mais físicos que mentais. Os efeitos psicológicos vêm do contexto porque sabíamos que tinha um movimento envolvido.
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Isso deve ter sido fundamental para tranquilizar vocês, dar mais ou menos segurança…
Claro. O Arílson nos dizia, individualmente, como reagir aos sintomas. Cada corpo reage de um jeito. Por exemplo, ele dizia que o Giovani tendia a ser o mais fraco fisicamente, não só pela magreza dele, mas pelo conjunto. E que, no geral, mulher resiste melhor física e emocionalmente. Ele mesmo dizia que existem poucos estudos sobre esse assunto e portanto, passam a ser quase que hipóteses. Mas nos dizia que era mais ou menos por ali e reafirmava que, como médico, a orientação era para que nos alimentássemos.
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* A greve de fome durou ao todo oito dias e terminou no dia 2 de maio.
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* Giovani Girolometto é veterinário e Cassiano Gasperin, arquiteto.
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Atualmente o tema volta à tona com a greve de fome do cineasta iraniano Jafar Panahi, preso político do governo de Mahmoud Ahmadinejad durante 50 dias. Jafar Panahi (O Círculo e O Balão Branco), que esteve diversas vezes no Brasil,  foi libertado nesta terça-feira, 25 de maio. Ele estava em greve de fome há uma semana e teve em seu favor cartas ao governo e justiça iranianos pedindo sua libertação assinadas por Martin Scorsese, Steven Spielberg, Francis Ford Coppola, Robert de Niro e Robert Redford, além de uma fiança de U$ 200 mil e muitos protestos durante o Festival de Cannes.
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Atualização 26/05, 13h30: Agradeço ao Giovani Girolometto que enviou a foto deles no saguão do C.I. Mercosul durante a greve.
NOTA: Se alguém tiver fotos da greve de 2001 na UFPel, peço que envie para ilustrar esse post.
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Democracia à brasileira II

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Anteontem tive a inspiração que me faltava para escrever o segundo texto da série sobre democracia. Faltava um elo de ligação com um fato real. Esse fato foi a entrevista (sic) da ex-ministra da Casa Civil e candidata à Presidência da República Dilma Roussef, ao José Luiz Datena na Rede Bandeirantes. A entrevista (sic) e sua repercussão (ou não-repercussão) trouxeram à tona o conceito geral que temos, na prática, sobre democracia, imprensa livre e independente e ética. Confesso que estou chocada. Acreditava estar cercada, ao menos virtualmente, de pessoas esclarecidas e bem posicionadas. No geral, são. Mas é preciso se dar conta que democracia não é futebol nem religião, e é um terreno onde não cabem fanatismos. Sob pena de perdermos nosso ceticismo, consciência crítica e passarmos a ver os fatos de forma distorcida, embaçada.

Eu pensei que fosse consenso entre os “meus” que os fins não justificam os meios (preciso lembrar de Stalin, Mao Tse Tung e de todo o Leste Europeu???) e que nos diferenciamos dos canalhas não na ideologia – que cada um tem a sua e tem esse direito, inclusive de achar que a sua é a melhor -, mas na prática, na ética dos atos diários, na chamada práxis (teoria praticada ou a ação prática da teoria).

Não quero apenas que todos tenham direitos básicos respeitados como alimentação, moradia, educação, saúde, transporte, lazer, cultura e informação. Quero um mundo igualitário, justo, ético e com condições equivalentes para todos. Isso tudo, assim, sem conceituar tecnicamente, é o que considero democracia.

Me ocorre um questionamento acerca da entrevista citada: Quando foi que a Band ou o Datena declararam apoio formal ao governo Lula ou a candidatura de Dilma Roussef? Até bem poucos dias, alguns antes da entrevista do presidente Lula ao programa Canal Livre, a Band fazia parte do que o Paulo Henrique Amorim chama de PiG (Partido da Imprensa Golpista). Deixou de ser?

Se considerarmos a hipótese da Rede Bandeirantes estar declarando seu apoio a um partido ou candidato, esse é um dia a ser comemorado no Brasil tanto quanto a Inconfidência Mineira ou a Independência. Uma empresa de comunicação assumindo pública e honestamente suas preferências políticas no Brasil, abriria um precedente salutar e fundamental para a construção de uma democracia sólida e real.

Se não for nada disso, preparem-se! Está aberto um precedente negativo e perigoso nessa campanha eleitoral – na prática já em curso e que, prevejo, será uma das mais repugnantes que já tivemos de presenciar. Os demais veículos se sentirão ‘autorizados’ a fazer o mesmo com os demais candidatos e será um salve-se quem puder.

Aí, eu quero saber: Como os “meus” reagirão? Como essa chamada imprensa alternativa, que tanto critica o comportamento da grande imprensa e o “mau jornalismo” que fazem (até agora com razão), irá reagir? E com que moral irão levantar suas vozes?

Em meio as minhas reclamações solitárias durante e após a entrevista (sic), alguém chegou a justificá-la, como se ela estivesse “equilibrando o jogo”. Desculpem-me, mas dois pesos e duas medidas a mim não servem. O que se viu na Band no último dia 21 não é jornalismo nem aqui e nem na China deve ser (piada tosca). Que dirá jornalismo independente!

Cuidado, blogueiros! Aceitar o jornalismo venal, tendencioso e subserviente só porque está momentaneamente favorecendo o seu candidato, partido ou ideologia, é aceitar que ética e justiça sejam apenas palavras vazias, sem significado, em discursos longos e falsos.

Não basta não sermos canalhas, precisamos provar que não somos nas nossas atitudes cotidianas.

Não basta criticar o mau jornalismo da grande imprensa. É preciso fazer o bom jornalismo, mesmo que para poucos ouvintes. Se não servir para mudar o jornalismo que se faz no país, servirá pelo menos para mantermos nossas consciências tranquilas. Se não houver consciência a ser tranquilizada, é porque, como já disse o Belchior, “eles venceram e o sinal está fechado pra nós, que somos jovens”… (ouça)

(Se estivesse no tuíter, diria agora #prontodesabafei)

Leia também Democracia à brasileira I