
contemplo o tempo passar por uma fresta do dia, da minha janela — nem dia nem noite, nem claro nem escuro — mais pra escuro, claro.
Dias mornos. Nem quentes nem frios, sem emoção, sem graça, chinfrins mesmo.
Minha melhor amiga que nunca poupou-me de dizer-me as verdades nem sempre acertava o dia para me atirá-las, e num desses dias — errados, de verdades certas — me definiu como alguém “nem”. Grávida do Calvin, em silêncio, em crise, abafada, sufocada, ouvi textualmente: — Tu é do tipo ‘nem’. Nem feia nem bonita, nem alegre nem triste, nem alta nem baixa, nem gorda nem magra… ‘nem’ — desferiu a punhalada, sem ter ideia do quanto suas palavras machucaram e ficariam ecoando.
Eu estava em dias assim, mesmo, quando ouvi isso. Mas estava mais para triste, mais pra baixo, mais pesada, mais feia. E nunca mais consegui me livrar dessas palavras. Nem quero mais (livrar-me delas), guardo-as com carinho. Alguns dias, como hoje, voltam a doer e, resignada — justo eu —, visto a palavra que me define e me sinto ‘nem’, com aquela sutil inclinação para um dos lados.
Suporto os dias, tentando administrar as mazelas sem piorar as coisas. Procrastinando é meu verbo, assim, no gerúndio. Ausência meu substantivo. E nem o advérbio da minha existência. Celular no silencioso sempre. Nunca atendo o telefone de casa. Quando toca a campainha finjo que não ouvi. Nem viva, nem morta, mais para quase viva. Observo a passagem do tempo por uma fresta do dia, da minha janela. Nem dia nem noite, nem claro nem escuro. Com uma sutil inclinação para o escuro, claro.
Quase viva, sem graça, morna. Nem.