Entrevista publicada neste sábado, 21, pelo Estadão:
Visões de um passageiro da política
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Em turnê pela Europa, compositor diz que Brasil é um país menos preconceituoso, elogia FHC, Lula e Marina
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SÃO PAULO – Lá em Londres, vez em quando me sentia longe daqui (…)/Naquela ausência/De calor, de cor, de sal, de sol, de coração pra sentir. Os versos do rock Back in Bahia, de Gilberto Gil, sobre o sentimento do exílio entre 1969 e 1972, não definem seu estado de espírito na última semana, quando revisitou a capital inglesa. Instalado no hotel Renaissance Chancery Court, tinha à mesa da suíte um exemplar da revista britânica The Economist, cuja capa traz o Cristo Redentor transformado em foguete, anunciando que o Brasil decolara de vez no mundo. Por onde passou na turnê de seu novo CD, o acústico Bandadois – em que se apresenta em dobradinha com o filho Bem, mais o violoncelista Jaques Morelenbaum -, cumprindo uma agenda de shows na França, Inglaterra, Alemanha e Espanha, o assunto foi o mesmo. “Os repórteres só me perguntam disso, o Brasil, o Brasil. Fico pensando: ‘O que dizer?’”, ri, satisfeito.
Aos 67 anos, o compositor baiano, que passou cinco anos e meio à frente do Ministério da Cultura do governo Luiz Inácio Lula da Silva, diz não ter saudades da política. “Está de bom tamanho”, resume a experiência vivida em Brasília, que, além de um bocado de tempo e energia criativa, tirou-lhe parte do brilho da voz, desgastada nas intermináveis conversações ministeriais. Por conta disso, diz ele nesta entrevista concedida ao Aliás, tem feito exercícios diários de fonoaudiologia. Mas não se furta a falar quando o tema é o Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado sexta-feira, no aniversário da morte do herói Zumbi dos Palmares.
Embora considere que a inclusão do negro na sociedade brasileira avançou desde a década de 60 – quando, aos 23 anos e já formado em economia, foi contratado como estagiário pela Gessy Lever, numa espécie de “experimento racial” -, Gil avalia que “é tijolo sobre tijolo, pedra sobre pedra, que essas coisas vão sendo construídas”. A favor da política de cotas para negros nas universidades brasileiras, não concorda que elas estimulem visões antiquadas que dividem a raça humana em negros, brancos, amarelos. Vê nesse tipo de ação afirmativa uma técnica de reparação já testada em outros lugares. Então, por que não aplicá-la no Brasil, por um período?
Pelo caleidoscópio com que enxerga o País, Gil defende o filme Lula, o Filho do Brasil – “é a cultura que está pegando o bonde da popularidade dele, não o contrário” -, mas critica a falta de visão estratégica do presidente em relação aos temas de cultura e meio ambiente. Faz um malabarismo conciliatório ao sair em defesa do amigo Caetano Veloso, que semanas atrás chamara Lula de analfabeto e grosseiro: “Caetano se referiu a uma coisa da qual todos nos orgulhamos, o fato de um homem não letrado ter chegado à Presidência com tanto êxito”.
Sexta-feira foi o Dia Nacional da Consciência Negra. Celebrar esse tipo de data faz diferença?
Há uma percepção na humanidade inteira de que essas coisas, de modo geral, adiantam. Na década de 80, fui fazer um show em Washington e me telefonaram dizendo que Stevie Wonder queria me ver. Saímos para jantar juntos e perguntei o que ele tinha ido fazer na capital americana. “Estou batalhando pelo Martin Luther King Day”, ele respondeu, referindo-se à implantação de um feriado devotado à causa negra. O dia de homenagem a Martin Luther foi de fato oficializado (em 1986). E, anos depois, temos a eleição do primeiro presidente negro americano. Você pode me dizer que não teve nada a ver, mas no final das contas é tijolo sobre tijolo, pedra sobre pedra, que essas coisas vão sendo construídas.
Leia a entrevista de Gilberto Gil na íntegra.