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Desobediência civil já!

Acho muito engraçado (no sentido de trágico) ver a classe média saindo às ruas para protestar contra a corrupção como se essa fosse um monstro a ser abatido e “esquecendo-se” que a corrupção está presente em cada um deles, em cada uma de suas atitudes, até mesmo no próprio ato contra a corrupção que identifica o ilícito no ato do outro e comodamente os exime de qualquer responsabilidade sobre a corrupção como epidemia. Pior ainda é quando coloca toda a política como corrupta, gerando ainda mais alienação e analfabetos políticos. Os empresários que reclamam dos políticos corruptos sob os holofotes são os mesmos que os corrompem nas sombras para seu benefício.

Mas quem elegeu o político corrupto alvo desses atos? Na hora do protesto, ninguém. Ele chegou ao parlamento e aos executivos por obra do espírito santo, de uma mágica oculta do demônio que não sabe o que é financiamento de campanha ou caixa dois. Quem suborna o guarda de trânsito para não pagar multa ou perder pontos na carteira de habilitação? Certamente que não é o povo pobre que anda espremido no péssimo transporte coletivo de norte a sul deste país. Quem se desculpa com sua diarista por “não poder” lhe pagar um pouco mais porque a vida está difícil, mas gasta três salários mínimos em um único vestido (estou aliviando a mão) para uma única festa? Certamente que não é a mulher que enfrenta quádrupla jornada de trabalho para dar conta da vida, dos filhos, da luta coletiva e ainda limpar a sujeira da sua família — porque, né… isso é da conta de cada um, mas o machismo e a divisão sexual do trabalho impede os homens de realizarem em casa essa tarefa “menos nobre”. (Não vou citar como corrupção a troca do voto por rancho porque de alguma maneira o povo mais pobre precisa ter de volta o que lhes é roubado diariamente. Acho lamentável que seja assim, mas jamais culparei um pai ou mãe de família que assiste cotidianamente a fome dos filhos por aceitar rancho de candidato salafrário.)

Poderia ficar o resto da vida dando exemplos de como somos complacentes com a corrupção quando essa nos beneficia e só vamos reclamar dela quando, depois de ter virado prática institucionalizada e cotidiana no país, atingir níveis estratosféricos e se voltar contra nós (me colocando aqui como classe média privilegiada que tem discernimento sobre seus atos para ninguém achar que é texto de ressentida, revoltada e coisa e tal). Chegará o dia em que a corrupção será declarada como problema de saúde pública ou crime hediondo — talvez devesse ser declarada assim desde antes — porque o dinheiro desviado da saúde e da educação, só para citar dois exemplos, é responsável diretamente pela morte de centenas de pessoas todos os dias neste país.

Quem não tem a capacidade de sentir a dor do outro, sua necessidade e nem ver sua opressão e que só enxerga o próprio umbigo se dará conta de que a parte mais fraca da chamada pirâmide social tem direito, sim, a fazer justiça de alguma forma? Essas pessoas vão às ruas protestar se dizendo “indignadas” com a corrupção que elas mesmas perpetuam e ajudam a promover. Mas cadê que percebem que tem gente morrendo por sua responsabilidade e culpa? Cadê que sentem culpa por isso? Cadê que percebem que numa sociedade o ato de um respinga na vida do outro e que não somos ilhas?

Essa ideia de democracia representativa de apertar botão numa urna a cada dois anos em que o povo escolhe representantes que decidirão por ele o que é importante é falsa, porque as decisões de fato importantes não são tomadas pelos eleitos e nem podem ser fiscalizadas pelos eleitores.

Disse José Saramago, sobre a falsa democracia em que vivemos:

Tudo se discute neste mundo, menos uma única coisa: não se discute a democracia. A democracia está aí como uma espécie de santa no altar, de quem já não se esperam milagres mas que está aí como uma referência, uma referência: a democracia! E não se repara que a democracia em que vivemos está sequestrada, condicionada, amputada, porque o poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política a tirar um governo de que não se gosta e a pôr um outro de que talvez se venha a gostar. Nada mais. As grandes decisões são tomadas numa outra esfera e todos sabemos qual é: as grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, a organização mundial do comércio, os bancos mundiais, a OCDE, tudo isso. Nenhuma dessas organizações é democrática e, portanto, como é que podemos continuar a falar de democracia se aqueles que efectivamente governam o mundo, não são eleitos democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes dos países nessas organizações? Os respectivos povos? Não! Onde está, então, a democracia?”

Estou defendendo claramente a ideia de que, de forma organizada, o povo mais pobre tem o direito democrático de roubar para matar a fome sua ou de um filho; ou fazer o gato de luz ou de tevê a cabo; ocupar prédios vazios quando não tenha onde morar ou quando for desalojado por conta de obras que beneficiam poucos; ocupar terras improdutivas para produzir alimento para subsistência; tomar de assalto uma farmácia com a lista de medicamentos receitados para toda uma comunidade pelos médicos do posto de saúde, e onde não tem remédio disponível porque o dinheiro foi desviado ou ainda não chegou por conta da burocracia; ou ainda tomar de assalto uma livraria para que todas as crianças de uma comunidade tenham material escolar e possam estudar. A isso chamo de expropriação justa e democrática, o direito de tomar para si a tarefa de fazer justiça, já que a chamada justiça favorece àqueles que menos precisam dela (aqui o link para monografia de Ivan Ribeiro sobre a justiça pender sempre para o lado mais forte.)

Se essa sociedade não é para todos, se o Estado não protege a todos, temos o direito de desobedecê-lo e a suas regras que beneficiam uma minoria poderosa. Não estou falando para cada um sair amalucadamente fazendo a sua justiça, mas para fazermos isso de forma consciente, organizada e coletiva. Ocupemos as praças e as ruas das cidades e façamos a democracia real, participativa. Não tenhamos medo de defender abertamente o que queremos. Se já na exigência começarmos a fazer concessões, chegaremos ao final das “negociações” sem nada. Precisamos ousar mais, precisamos de coragem para exercer nossos direitos.

Prestem atenção nessa assembléia de Nova Iorque, do movimento Occupy Wall Street e percebam o que é democracia direta:

Não preciso que a “justiça” ou um governo determine a que tenho direito nessa vida ou pelo que devo lutar. Estou farta de ver milhares crianças morrendo de fome diariamente para que alguns comam caviar e enquanto outros fazem proselitismo político com dinheiro público; farta de ver a violência contra mulher crescer porque essa opressão sustenta esse sistema podre que explora 99% para manter o luxo de 1%; farta de ver a intolerância e a impunidade manter na marginalidade negros, homossexuais, estrangeiros mundo afora como se fossem menos humanos que outros.

A corrupção só é possível nessa falsa democracia capitalista em que vivemos, onde o 1% suborna uma parcela dos 99% que detém os cargos de decisão e representação, e mantém o restante dominado e massificado através da grande mídia para permanecerem dominando. Numa democracia direta, sem burocracia ou intermediários, sem opressores e oprimidos, onde o povo decida onde e como aplicar os recursos disponíveis, não há espaço ou desvios para corruptos e corruptores.

Desobediência civil já, e que pode ser organizada nas redes sociais. Por que não?

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ps: A desobediência civil já foi proposta como forma de insurreição contra ditaduras, por Gandhi na Índia colonizada pela Inglaterra, por Martin Luther King na luta pelos direitos civis nos EUA e até numa campanha para vereador em Porto Alegre em 1982 pelo companheiro/camarada Zezinho Oliveira  que tinha como slogan “Desobedeça” — Ele aparece nesse documentário do Cio da Terra (próximo dos 30 minutos). Os tempos eram outros (o PT, partido pelo qual ele era candidato também), mas o sentido é o mesmo. Ao rever o documentário fiquei me perguntando onde foi que retrocedemos tanto? onde foi que “encaretamos” dessa forma?

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A tragédia humana, em letras e imagens

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Dia 16 — O livro favorito que virou filme

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Desde que vi a lista de livros do desafio sabia qual seria este, mesmo suspeitando da obviedade. Mas foi um dos únicos filmes que mesmo assistindo depois de ter lido o livro não me decepcionou, e esse foi o meu critério. Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago virou filme nas mãos do cineasta brasileiro Fernando Meirelles e se tornou ainda mais especial para mim, embora a leitura tenha sido aterrorizante.

Todos nós criamos imagens e meio que uma versão cinematográfica mental para cada história que lemos. A visão do diretor combinada com a do roteirista dificilmente vai se aproximar dos filmes criados mentalmente por todos que leram a história, e por isso é comum a decepção com versões para o cinema de nossos livros favoritos. Mas Meirelles conseguiu se aproximar em muito do roteiro da obra de Saramago, que estava quase que roteirizada e por isso, na minha opinião, ficou tão próximo desse filme particular de cada um. Para ser sincera, a minha versão imaginária de Ensaio Sobre a Cegueira era mais violenta, mais perversa e cruel e na tela teria ficado intragável, insuportável de “digerir”.

Ensaio Sobre a Cegueira é um romance que conta a história de uma epidemia de cegueira, inexplicável, que se abate sobre um país. A “cegueira branca” – assim chamada porque as pessoas infectadas passam a ver apenas uma superfície leitosa – atinge primeiramente um homem no trânsito e, lentamente, espalha-se pelo país. Aos poucos, todos ficam cegos e à medida que os afetados pela epidemia são colocados em quarentena e os serviços do Estado começam a falhar, a trama segue a mulher do médico que atendeu o primeiro infectado, a única pessoa que não é afetada pela doença e mantém esse segredo dos demais. O desenrolar da história é um festival horrores e violência que só a natureza humana é capaz de proporcionar.

“Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.”

Essa foi a reação de José Saramago logo após assistir a premier do filme ao lado de Meirelles:

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Vou eu discutir com Saramago?

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Baixe Ensaio Sobre a Cegueira em pdf.

Baixe a versão cinematográfica de Ensaio Sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles.

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No desafio 30 livros em um mês também estão a Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel, a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Rita do Estrada Anil, a Marília do Mulher Alternativa, a Grazi do Opiniões e Livros, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Juliana do Fina Flor, o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo e também a Renata do Chopinho Feminino. E tem mais a Fabiana Nascimento que posta em notas no seu perfil no Facebook. Mais alguém?

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Ausência

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Pensei em não me manifestar sobre a morte de José Saramago, achando que o silêncio representaria melhor o vazio. Mas decidi registrar como me sinto sobre a sua ausência. Humanista, libertário, ateu, comunista, mestre das palavras, ativista dos direitos humanos, rebelde, inquieto… Enfim, poderia gastar muitas linhas tentando defini-lo, mas não sou hábil com as palavras como ele e não conseguiria traduzir toda a amplitude de sua existência. Só o que posso dizer é que me sinto órfã nesse momento. Além de alguns livros dele que li (ainda faltam vários), costumava acompanhá-lo em seu blog sempre que possível. Ou seja, o acompanhava à distância. Mas só o fato de saber que ele estava lá, em sua biblioteca, escrevendo e com sua lucidez e visão crítica aguçada, sempre pronto a se manifestar em favor dos injustiçados e oprimidos no mundo, me confortava. Fato é que o mundo ficou infinitamente mais pobre sem Saramago. Às vezes penso que para algumas pessoas o tempo deveria parar… Mas como não haveria consenso sobre quais deveriam ser os imortais, precisamos aprender a viver com a ausência daqueles que partem antes de nós. Saramago deixa aquele vazio imenso, aquela dor, aquela certeza de que nada irá substitui-lo ou preencher o espaço que ocupava. A esse vazio a língua portuguesa define como saudade, já tão imensa e irremediável. Bom saber que vivemos através do nosso legado, de nossa obra, daquilo que construímos. Significa dizer que Saramago é imortal.

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(Vídeo gravado na biblioteca de sua casa em Lanzarote, Ilhas Canárias, com um grupo de artistas e amigos cantando Grândola Vila Morena, o hino da Revolução dos Cravos)
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Último registro em Outros Cadernos de Saramago:

Pensar, pensar

Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, nao vamos a parte nenhuma.
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(entrevista à Revista do Expresso, Portugal, 11 de Outubro de 2008)
José Saramago
16/11/1922 – 18/06/2010
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