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Sonhava ser jornalista desde que tinha uns sete, oito anos de idade. O engraçado é que sempre que minha avó brincava comigo dizendo que eu queria ser “repórter” (ela se referia a repórter de tevê), retrucava dizendo que queria ser jornalista (me referia a escrever em jornal). Com a adolescência, e o envolvimento com o movimento estudantil, me perdi um pouco dos meus primeiros sonhos e passei a priorizar a construção de sonhos coletivos. Só um pouco mais tarde, menos negligente comigo, consegui encontrar um caminho para equalizar as duas coisas: sonhos coletivos via sonho pessoal.
Nessa época conheci pessoalmente o jornalista que seria meu espelho profissional para toda vida, Deogar Soares (*). O “Velho” não era formado, recebeu o registro quando a profissão foi regulamentada em 1979. No entanto, não lhe faltava técnica. Aliás, sobrava. Assim como lhe sobravam ética, caráter, respeito pelo ser humano e sonhos. É nele, meu querido amigo, que busco inspiração quando escrevo. Embora não tenha a pretensão de sequer me equiparar, pois não conseguiria mesmo que me superasse.
Para escrever um bom texto, manter um blog, para comentar um fato da atualidade ou para apresentar programas de televisão não é preciso ser jornalista, diplomado ou não. Mas o jornalismo é muito mais que isso. Quem passou pela universidade e se esmerou em aprender, conhecer, e continua se aprimorando profissionalmente, e quem exerce a profissão com dignidade sabe do que estou falando.
Caráter vem de berço, se aprende em família. Mas técnica, conjunto de normas e a chamada ética profissional se aprende, se toma conhecimento na universidade. Isso é fato, não é discurso corporativista. Além do que, a universidade – sentido de universalidade do conhecimento ou conhecimento universal – amplia nossos horizontes. Ampliou o meu, mesmo que tenha feito o vestibular completamente descrente dessa possibilidade e a qualidade do curso não fosse lá essas coisas.
Não que a universidade não tenha responsabilidade pela formação desta geração de jornalistas sem personalidade, deformados eticamente e submissos aos chefes de redação. Tem muita. Vi muitos colegas serem treinados para trabalhar para determinada empresa. Alguns porque entraram para a faculdade com esse objetivo mesmo e outros foram sendo cooptados, levados a pensar ser essa a única forma (render-se ao status quo) de garantirem um estágio, um emprego.
Boris Casoy – o jornalista mais questionado do momento – tem registro mas não é formado, e é um ferrenho defensor da não obrigatoriedade do diploma. Acredito que o Deogar também fosse contra, embora jamais o coloque no mesmo campo de Casoy – seria um insulto a sua memória.
Ou seja, bons e maus, éticos e canalhas, sempre existem – e existirão – nos dois lados de qualquer batalha. Forçar essa dicotomia entre o bem o mau – como fazem hoje os que concordam com a decisão do STF – não ajuda em nada a qualificar o jornalismo exercido no Brasil.
Muitos, indignados com a ofensa de Casoy aos garis, tem ofendido a categoria dos jornalistas dizendo que “para ser gari é preciso ensino fundamental completo e para ser jornalista não é preciso nada”, concordando no final das contas com o próprio ofensor. Esquecem que o problema de Casoy não está na sua qualidade profissional, que seu currículo é suficiente para comprovar, mas na sua ideologia carcomida, preconceituosa e disfarçada de imparcial.
Lembrando uma das muitas lições de Deogar: “Não existe imparcialidade. Mas tu podes ser isento se fores honesto sobre a tua ideologia com teus leitores e ouvintes”. Deogar era muito criticado pelos hipócritas que acreditam na imparcialidade da imprensa, por assumir abertamente sua ideologia e filiação partidária. Para mim era mais um motivo para admirá-lo.
Jornalismo é profissão de fé. Além de formação superior e estar atento às novas mídias e recursos tecnológicos, é preciso vocação, abnegação, muita disposição, muita leitura (mas, muita mesmo!), pouca vaidade, gostar de gente, saber que tudo na vida tem pelo menos dois lados (e não “esquecer” de escutá-los), ser curioso, cético, perseguidor da verdade, e o mais importante: ter caráter (original de fábrica, sem dispositivo substituto opcional à venda no mercado). Este é o “nada” que considero minimamente necessário para abraçar o jornalismo. Talento é a cereja do bolo.
Ideologia, todos tem (mesmo os que negam e se julgam apolíticos) e é bom para o exercício profissional que seja assumida com franqueza e transparência. Não é crime dizer que apóia essa ou aquela ideologia, esse ou aquele partido ou candidato. Mas é, no mínimo, antiético fazê-lo escondido atrás da capa de imparcialidade. Bom seria se todos os veículos da grande imprensa no Brasil assumissem abertamente sua ideologia e seus candidatos, como fazem os americanos ou os jornalistas blogueiros. Sonhar não custa nada mesmo!
(*) Deogar Soares era jornalista, radialista e fotógrafo em Pelotas, falecido em 17 de agosto de 2003, teria 74 anos hoje. Conto um pouco de sua história dele aqui.