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O escárnio e a tortura que nunca acaba

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O Brasil foi o primeiro país da América Latina a sofrer um golpe militar nas décadas de 60 e 70 e daqui eles se espalharam, principalmente pelo cone sul. Esse processo foi gestado pelos Estados Unidos que viu a partir da Revolução Cubana o “perigo” do comunismo chegando muito perto do “seu quintal”. Junto com os golpes se espraiaram os métodos de tortura e a prática abominável do desaparecimento político entre os países do cone sul. A isso chamou-se Operação Condor.

O desaparecimento político, forçado, era prática usual nas ditaduras latino-americanas — Enrique Serra Padrós explica minuciosamente como isso ocorria no artigo “A política de desaparecimento como modalidade repressiva das ditaduras de segurança nacional” — como forma de eliminar os opositores de esquerda e varrer da face da Terra os perigosos subversivos que ameaçavam a dominação estadunidense nas Américas:

“A morte genérica, diluída e cheia de imprecisões desumaniza a experiência de viver e a falta de resposta, caso a caso, torna a incerteza uma ferida permanentemente exposta. A privação da morte impacta a memória, e a suspensão indefinida do luto age sobre o esquecimento e o anestesiamento individual e coletivo resultantes.
Findadas as ditaduras de Segurança Nacional, a persistência de desaparecidos e a falta de esclarecimentos ou elucidamento das situações que os geraram levou à presunção de que os mesmos haviam sido alvos de execuções extrajudiciais. Aliás, fatos já denunciados durante a vigência das próprias ditaduras e confirmados, posteriormente, pelos testemunhos colhidos pelas diversas Comissões da Verdade e da Justiça e pelos diversos relatórios “Nunca Mais”. Em função disso, os desaparecimentos passaram a ser percebidos como homicídios ilegítimos e deliberados, perpetrados sob as ordens de um governo ou com a sua cumplicidade ou consentimento. Quer dizer, foram execuções extrajudiciais e não acidentes recorrentes de excessos ou obra de soldados ou policiais que agiram isoladamente. Foram fatos previstos ou absorvidos dentro de uma rede de comando cujasdecisões e ordens emanaram de esferas governamentais.”  — trecho do artigo de Padrós.

As vítimas dessa prática cruel e abominável, quase que exclusivamente usada contra a esquerda e os “comunistas”, estão sendo justiçadas em todos os países do cone sul, menos no Brasil que sequer reviu sua lei da anistia ou abriu os arquivos do período da ditadura militar. A tal da Comissão da Verdade, que está para ser votada no Senado Federal (último trâmite no parlamento antes de ser sansionada e entrar em vigor), não passa de uma farsa. Não bastasse a total falta de compromisso desse governo em fazer justiça aos mortos e desaparecidos, volta e meia eles são usados para passar a ideia de que sua memória não será esquecida ou que são respeitados.

detalhe da capa do livro Segredo de Estado -- O desaparecimento de Rubens Paiva, de Jason Tércio

A bola da vez é o ex-deputado Rubens Paiva, que foi cassado, torturado, assassinado e desaparecido pelo Estado brasileiro há 40 anos, e agora dará nome ao corredor de acesso da Câmara e ainda ganhará um busto. Busto? É isso que o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), autor do projeto de resolução 85/11, chama de homenagem ou respeito à memória? Detalhe sórdido: Erraram até o nome de Rubens Paiva. Na matéria do portal da Câmara e no site da liderança do PT está grafado como “Rubem”. Ou seja, sequer devem ter lido algum documento de Rubens Paiva e nem mesmo o blog do jornalista Marcelo Rubens Paiva (filho) no Estadão.

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Nenhum busto preencherá o vazio de não se saber em que condições o deputado Rubens Paiva foi assassinado e a ausência de seus restos mortais para que sua família finalmente encerre seu luto e ponha fim a essa tortura continuada. E isso vale para todos os mortos e desaparecidos da ditadura militar. Não tem nome de rua, de escola, não tem placa que ponha fim à dor das famílias desses cidadãos e cidadãs que desapareceram sob a tutela do Estado brasileiro.

“Na última conversa que tive com meu pai (Joaquim Pires Cerveira, um desaparecido político da Operação Condor) logo depois da primeira tentativa de golpe no Chile, quando ele decidiu me tirar do país, sabíamos que era a última conversa, devido a natureza do processo histórico que apontava para uma derrota. Ele me disse então: “Minha filha essa batalha está perdida (lutou até o último instante de sua vida). Então, não deixe nunca que eu vire nome de rua ou receba homenagens. O que espero é que a luta pela libertação dos povos continue até a batalha definitiva, que com certeza trará a vitória!”. Tentei respeitar a vontade do meu pai. Nunca compareci a nenhuma inauguração de rua com seu nome, nem sequer a entrega da Medalha Chico Mendes de resistência eu fui. Eles, os revolucionários, não queriam homenagens, queriam que continuássemos lutando, batalha por batalha, até a vitória. Eu continuo na luta, até a última batalha.” — depoimento de Neusah Cerveira, ontem à noite.

A vontade do PT é tanta em “homenagear” os desaparecidos que no dia 28 de setembro se uniu a Jair Bolsonaro para derrubar o projeto da deputada Luiza Erundina que previa a revisão da lei da anistia e alguns dias antes ajudaram a derrubar todas as emendas propostas pelos familiares dos mortos e desaparecidos quando da aprovação da Comissão da Verdade.

Todo esse escárnio de que ainda são vítimas os mortos e desaparecidos e seus familiares só é possível pelo silêncio cúmplice da sociedade brasileira. Já passou da hora de revermos nosso passado e do Estado brasileiro fazer a sua parte abrindo os arquivos secretos, iniciando o processo de investigação das condições das mortes e desaparecimentos, julgando e punindo os responsáveis e, por fim, um pedido de desculpas oficial do Estado brasileiro à nação por todas as atrocidades e violações de direitos humanos cometidas. A única exigência é justiça.

Há um movimento se articulando para de forma organizada exigir tudo isso. Junte-se a nós no “CUMPRA-SE!

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A Pachamama


No planalto andino, mama é a Virgem e mama é a terra e o tempo.
Fica zangada a terra, a mãe terra, a Pachamama, se alguém bebe sem lhe oferecer. Quando ela sente muita sede, quebra a botija e derrama o que está lá dentro.
A ela se oferece a placenta do recém-nascido, enterrando-a entre as flores, para que a criança viva; e para que o amor viva, os amantes enterram cachos de cabelos.
A deusa terra recolhe nos braços os cansados e os maltrapilhos que dela brotaram, e se abre para lhes dar refúgio no fim da viagem. Lá embaixo da terra, os mortos florescem.
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Do livro Memórias do Fogo, As Caras E As Máscaras de Eduardo Galeano
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#Locos por ti, America!
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O tempo

O tempo dos maias nasceu e teve nome quando não existia o céu e a terra ainda não tinha despertado.
Os dias partiram do oriente e começaram a caminhar.
O primeiro dia tirou de suas entranhas o céu e a terra.
O segundo dia fez a escada por onde a chuva desce.
Obras do terceiro foram os ciclos do mar e da terra e a multidão das coisas.
Por desejo do quarto dia, a terra e o céu se inclinaram e puderam encontrar-se.
O quinto dia decidiu que todos trabalhassem.
Do sexto saiu a primeira luz.
Nos lugares onde não havia nada, o sétimo dia pôs terra.
O oitavo cravou na terra suas mãos e seus pés.
O nono dia criou os mundos inferiores.
O décimo dia destinou aos mundos inferiores quem tem veneno na alma.
Dentro do sol, o décimo primeiro dia modelou a pedra e a árvore.
Foi o décimo segundo quem fez o vento. Soprou vento e chamou-o de espírito, porque não havia morte dentro dele.
O décimo terceiro molhou a terra e com barro modelou um corpo como o nosso.
Assim se recorda, em Yucatán.
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Do livro Memórias do Fogo, Nascimentos de Eduardo Galeano
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Locos por ti, America!
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* Porque voltei a sentir a mão pesada do tempo interferindo no meu tempo particular…
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Te vi…

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“…
Te vi, te vi, te vi
Yo no buscaba a nadie y te vi
…”
(Un Vestido Y Un Amor, Fito Paez)
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Locos Por Ti, America!


O Mundo

Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.— O mundo é isso — revelou —. Um montão de gente, um mar de fogueirinhas. Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.
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D’O Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano

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Locos Por Ti, America!


O último combate de Che

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Em 7 de outubro de 1967 a captura e o assassinato no dia seguinte do “guerrilheiro heroico” fez surgir o maior mito da esquerda

Em novembro de 1966, Che chegou a La Paz, com documentos falsos, com o nome de Adolfo Mena, Enviado Especial da OEA, para realizar um estudo sobre as Relações Econômicas e Sociais vigentes no Campo Boliviano. A credencial foi fornecida pela Direção Nacional de Informações da Presidência da República. Nessa oportunidade, Che se apresentava bastante calvo e sem barba. Seu roteiro de viagem até La Paz incluiu Praga, Frankfurt, São Paulo e Mato Grosso.

O movimento guerrilheiro da Bolívia recebeu ajuda financeira, entre outros, de Cuba, Sartre e Bertrand Russel, que recolheram dinheiro nos meios intelectuais. Após onze meses de luta e uma série de peripécies, as guerrilhas foram dizimadas pelos “Boinas Verdes Quíchuas”, tropa de elite do exército boliviano, treinada pelos Estados Unidos especialmente para esse fim.

Che foi ferido na tarde do dia 7 de outubro de 1967, às 13h30, aproximadamente. Atingido em várias partes do corpo, orientou seus captores na colocação de torniquetes para estancar as hemorragias. Em seguida, foi levado para Higueras, lugarejo a 12 km do estreito do Rio Yuro, onde aconteceu sua última batalha. Deixaram-no abandonado, sem nenhuma assistência, numa sala vazia da escola local. Após numerosas consultas chega a ordem: Che Guevara deve morrer. Já era dia 9 de outubro.

O capitão Gary Salgado, chefe da companhia de rangers do 2º regimento que o capturou, dispara-lhe nas costas um rajada de metralhadora, de cima para baixo. O Coronel Andrés Selnich, comandante do 3º Grupo Tático, dá-lhe o tiro de misericórdia, com sua pistola 9 mm. A bala atravessa-lhe o coração e o pulmão.

Está morto o símbolo da guerrilha na América Latina, que se achou mais útil ao seu povo servindo à causa da Revolução Internacional que à da Medicina.

A extinta TV Tupi foi a única emissora de televisão no mundo a filmar o corpo de Che. A equipe estava em Valegrande, em virtude de problemas com o carro que a transportava, a caminho de Camiri, onde haveria o julgamento de Régis Debray, companheiro de Che que havia sido preso quando chegou a notícia da morte de Che. Filmaram a chegada de helicóptero, que trazia o corpo do guerrilheiro amarrado na sua parte exterior, o povo que o esperava e em seguida sua autópsia realizada num casebre que servia de necrotério ao Hospital Senhor de Malta, em Valegrande.

“Um Ernesto Che Guevara magro, de barba rala, olhos muito abertos e um sorriso estranho nos lábios mortos”, lia-se no Jornal da Tarde de 11 de outubro de 1967.

Logo após mostrarem o corpo aos poucos jornalistas que conseguiram chegar a tempo ao local, arrancaram-lhe o dedo indicador, não se sabe pra quê, e incineraram seu corpo, pois temiam uma peregrinação ao seu túmulo. Che foi sepultado junto com outros seis guerrilheiros na madrugada do dia 11 de outubro.

Em 1971 Fidel Castro tentou trocar os restos mortais de Che por prisioneiros cubanos, mas a Bolívia se recusou a negociar. Quando o mundo se preparava para reverenciar os 30 anos de seu desaparecimento, em 1997, surgiram boatos sobre a localização de seu corpo, que foi encontrado sob o terreno do aeroporto de Vallegrande e reconhecido pelo médico forense cubano Jorge González.

Em 17 de outubro de 1997 Che foi enterrado com pompas na cidade cubana de Santa Clara (onde liderou uma batalha decisiva para a derrubada de Batista), com a presença da família e de Fidel Castro.

“De Che nunca se poderá falar no passado.” – Fidel Castro.

(Fonte)


Somo todos Marcos!

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Do Congresso da UNE de 1995, em Brasília, trouxe boas lembranças, contatos com a Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (ENECOS) – que me valeram mais que o curso inteiro – e algumas camisetas, daquelas brancas de protesto típicas dos estudantes da esquerda. Uma delas tinha uma foto do líder do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) do México e a frase “Somos todos Marcos”. Adorava essa camiseta e a usava com orgulho. O comandante Marcos deu um novo fôlego à esquerda mundial com sua ousadia e criatividade na capacidade de comunicação, usando a internet – que ainda engatinhava – para divulgar a opressão desumana sofrida por seu povo em Chiapas.
Infelizmente a camiseta se perdeu, mas a mensagem não. Essa madrugada a reencontrei em vídeo. Todos nós que lutamos por democracia, trabalho, educação, saúde, moradia, justiça, cultura, alimento, independência, paz, informação, terra e liberdade nesse continente, somos Marcos.
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Locos Por Ti America!
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Crise na Venezuela

Excelente e esclarecedora entrevista com o sociólogo Edgardo Lander sobre a crise da Venezuela e análise do chavismo. É difícil ficar apenas com a versão de bandido e candidato a ditador passada pela grande imprensa ou, em contrapartida, com o endeusamento de Hugo Chávez por setores da esquerda. A prudência indica: nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A entrevista está publicada no Outras Palavras.

O chavismo em seu curto-circuito

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O sociólogo Edgardo Lander examina, no Fórum Social Mundial, as causas da nova crise venezuelana. Para ele, a esquizofrenia do processo bolivariano está na origem das turbulências; e os próximos seis meses podem redefinir o futuro político do país
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Antonio Martins, Brunna Rosa e Rita Casaro
Outras Palavras
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Em Porto Alegre, no mesmo palco onde participou há pouco do seminário que avalia os dez primeiros anos do Fórum Social Mundial, o sociólogo venezuelano Edgardo Lander concede agora uma entrevista sobre a crise em seu país. Ao ouvir a pergunta, o corpo que sustenta este rosto tenso, de testa larga e pelos grisalhos, inquieta-se. Lander se remexe na poltrona, para ficar ereto; emite um suspiro e começa a descrever, com detalhes e nuances, o que quase nunca aparece na mídia. Nem a oficial, que vê em Chávez um demônio a ser exorcizado, nem a de certa esquerda, que quase sempre trata o presidente como anjo redentor.

“O processo político venezuelano continua marcado por uma profunda esquizofrenia”, pensa este professor da Universidade Central da Venezuela e membro do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso). “A mobilização social desencadeada desde a posse de Chávez despertou da apatia as maiorias. Elas sentem-se donas do país. Milhões de pessoas, antes submissas, querem opinar. E o fazem, nos Conselhos Comunais, Comitês de Água, ou espaços abertos para debater as políticas de Saúde e Educação.

“No entanto, a mobilização foi desencadeada pelo Estado e dele depende fortemente”, continua Lander, que também é um dos articuladores assíduos e inspirados dos Fóruns Sociais das Américas. Ele dá exemplos: “Os Conselhos Comunais, pedra de toque do novo processo político, costumavam encarar a sério todas as propostas de debate lançadas pelo presidente. Mas que fazer se, em meio a uma polêmica intensa, os integrantes de um Conselho ligam a tevê e vêem o presidente anunciar, garboso, que ya decidió a questão em que estavam mergulhados? Não é natural que se enxerguem como meros figurantes?”, pergunta o sociólogo.

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