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A ditadura que ainda não superamos

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“Esse crime, o crime sagrado de ser divergente, nós o cometeremos sempre” — Pagu

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A luta pela abertura dos arquivos da ditadura, para que finalmente possamos acertar as contas com nosso passado, não é pessoal. Não tenho a princípio nenhum motivo para estar tão mobilizada nessa imensa e inglória batalha. Não tenho nenhum parente morto, desaparecido ou que tenha sido torturado durante a ditadura ou depois.

Por mais que me incomode — e incomoda demais — mobilize, não consigo dimensionar a dor de quem tem filho, pai, mãe desaparecido. Um dia o Calvin fugiu e vi o chão desaparecer sob meus pés. Não gosto nem de lembrar da dor e agonia que é não saber o destino de um pedaço meu que é só todo o meu coração. Cheguei a escrever que talvez tivesse tido uma pequena mostra ou noção do que as mães dos desaparecidos sentem. Mas, não, não sei. Porque aquela meia hora foi de uma dor tão intensa e dilacerante que quase sufoquei e não sei, não saberia viver com ela ad eternum.

Toda essa dor, essa tortura continuada com quem sequer escolheu a resistência ou o enfrentamento à força bruta, com quem é tão e somente vítima dos chamados efeitos colaterais do horror institucionalizado ou com quem cometeu o gravíssimo crime de discordar, ganha contornos de sordidez se pensarmos que essa situação só perdura porque a imensa maioria dos brasileiros não se importa com a dor alheia.

É fato também que a imensa maioria dos brasileiros é acomodada diante dessa situação porque ignora por completo tudo o que aconteceu durante a ditadura, e é levada ao erro quanto à intenção e ao caráter da ditadura desde o golpe de 64 pelas famílias que dominam a comunicação do país e que fizeram fortuna se aliando aos golpistas. De verdade, nem quem está mergulhado nesta luta sabe tudo que aconteceu. E mesmo que um filme ou outro, minissérie, livro ou novela, aborde a questão, enquanto não abrirmos os arquivos da ditadura, enquanto esse período não for alterado nos livros de história não há como comover ou mobilizar ninguém e, portanto, é pouco provável que se possa pensar em punir os torturadores e agentes do Estado responsáveis por assassinatos e violações dos direitos humanos. Com os governos e o  judiciário já sabemos que não podemos contar.

Só quando o período da ditadura ganhar os livros de história com todas as suas cores horrendas e detalhes monstruosos teremos todos a dimensão do quanto essa democracia se parece com uma ditadura e até onde a repressão ainda nos alcança e limita. Diz o poeta Juan Gelman, que teve filho e nora grávida assassinados e desaparecidos pela ditadura argentina que “encontrar um desaparecido é honrá-lo, dar-lhe um lugar na memória”. Talvez isso explique porque o Brasil é o “único país sul-americano onde torturadores nunca foram julgados, onde não houve justiça de transição, onde o Exército não fez um mea culpa de seus pendores golpistas” (Edson Teles e Vladimir Safatle, em O QUE RESTA DA DITADURA)

Apesar da alegria diante dos escrachos (concordo totalmente com Carlos Fico nessa questão, algo precisava ser feito mesmo que pareça contraditório do ponto de vista da defesa dos direitos humanos) realizados pelo Levante Popular da Juventude no dia 26 de março — identificando e constrangendo os torturadores que posam como cidadãos de bem diante de seus vizinhos e colegas de trabalho –, com a mobilização do MPF em abrir ações criminais visando  responsabilizar os agentes do Estado que torturaram, assassinaram e desapareceram (sequestro e ocultação de cadáver), e ainda com a expectativa do novo julgamento da Lei da Anistia no STF (deve ocorrer na próxima semana), não posso ignorar o que vejo todos dias.

Polícia que reprime todo e qualquer ato público nas ruas de qualquer cidade do país, violando o direito constitucional à livre expressão e manifestação — isso quando a Constituição não é desrespeitada pela própria justiça que tem liberado liminares que proíbem desde manifestação contra aumento da tarifa de transporte público até jornalista de exercer sua função. Democracia? O tuíte abaixo do jornalista Ruy Sposati contém a foto de um helicóptero usado na tarde de 02/04/2012 para “conter” os trabalhadores em greve do Consórcio Construtor de Belo Monte, em Altamira-PA. E como se não bastasse o absurdo da situação, o Consórcio conta com o apoio e conivência da imprensa oficial do governo que “apura” os fatos ocorridos no Pará diretamente de Brasília.

Democracia com helicóptero apontando fuzil para trabalhador? Foi essa a transição da ditadura para a democracia que fizemos?

Fiz essa montagem abaixo para um post sobre democracia em 2010, com imagens daquele ano de repressão à protestos e manifestações nas ruas do Brasil  comparadas à imagens da época da ditadura. Observem:

Quadro montagem com fotos da época da ditadura (esquerda) e atuais (direita). Qual a diferença?

Tudo isso para dizer que tenho TODOS OS MOTIVOS DO MUNDO para lutar pela abertura dos arquivos secretos da ditadura militar, pela investigação dos crimes e violações de direitos humanos cometidos pelo Estado brasileiro contra cidadãos, pela localização dos corpos e restos mortais dos desaparecidos políticos, e pela revisão da Lei da Anistia para que se possa processar e punir criminalmente os torturadores, além de responsabilizar o próprio Estado pelos crimes de tortura, assassinato e desaparecimento forçado no período entre 1964 e 1979 (alguns irão dizer que a ditadura acabou oficialmente em 1985, mas a Lei da Anistia abrange os crimes cometidos apenas até 1979 — teoricamente). Vale lembrar que tem pessoas nessa luta há mais de 30 anos e eu mal comecei.

Já afirmei: Essa luta é minha e é de todas as pessoas que conseguem minimamente perceber que estamos todos em risco. Quanto mais acharmos (coletivamente) que nada temos a ver com a dor do outro mais nos colocamos em risco. Enquanto permanecermos inertes diante da violação de direitos humanos, o Estado e seus órgãos repressores vão dia a dia consolidando a tortura, o assassinato e o desaparecimento forçado como prática cotidiana nesse nosso arremedo de democracia, sempre em benefício da mesma classe já favorecida durante a ditadura — e se os empresários financiaram a tortura, tirania e os desmandos dos militares e civis, é porque lucraram muito com isso. Se antes eram apenas (apenas?) os comunistas e subversivos os alvos do Estado, hoje são os negros, pobres e — como podemos observar nas imagens atuais, continuam sendo — alvo os que ousam discordar e protestar.

Precisamos abrir os arquivos da ditadura e punir os torturadores se quisermos pensar o Brasil como nação soberana. Não há meio termo, meia verdade ou meia democracia.

Por fim, lembro que escrevi esse amontoado de considerações, talvez meio desconexas, inspirada numa canção que estou ouvindo a semana toda, principalmente nesses dias de blogagem coletiva #desarquivandoBR (da qual esse post faz parte), que talvez explique melhor tudo o que quis dizer:

Mão, violão, canção e espada 
E viola enluarada 
Pelo campo e cidade, 
Porta bandeira, capoeira, 
Desfilando vão cantando 
Liberdade.
(Marcos Valle)