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Música como tradução

Para o Gilson.

eu + gilson

Acho que tive sorte quando desembarquei no Rio de Janeiro. Vim pra cá na incerteza, sem saber direito o que fazer nem quanto tempo ficaria nem se ficaria. Não tinha nenhum alvo ou propósito. Não mirei, não atirei, não me atirei. Mas acertei.

Nessa cidade que me endurece a cada dia e onde estou há mais de um ano, encontrei um amor tranquilo, desses de calmaria que invadem devagar, que eu nem sabia que queria. Parceria de vida, nos planos, em sonhos de futuro, sonhos de mundo, mas principalmente parceria no dia a dia. Nem preciso dizer que ele tem uma enorme paciência comigo, que atura a oscilação do meu humor com persistência, e sei que não é por concessão.

E justamente por ser um parceiro de sonhos, não nos apegamos a datas comerciais ou cristãs nem trocamos presentes. Manifestamos nosso afeto em pequenas gentilezas e muitas grosserias, daquelas que só somos capazes diante de pessoas com quem nos sentimos completamente à vontade. E nos sentimos em casa um com o outro, um no outro. Casa-abrigo, casa-desconforto, casa-lar, casa-lar-ogro, casal ogro.

Apesar de não sermos um casal comum, mantemos algumas coisas de casal. Tipo ter uma música, uma canção que nos representa e nos canta, nos encanta. Cruzada, do Tavinho Moura e Márcio Borges se escolheu sozinha, nós apenas a reconhecemos. Então, segue a letra que traduz nossa parceria.

Antes clica no vídeo para ouvir essa lindeza.

Cruzada

Não quero andar sozinho por estas ruas Sei do perigo que nos rodeia pelos caminhos Não há sinal de sol, mas tudo me acalma No seu olhar

Não quero ter mais sangue morto nas veias Quero o abrigo do abraço que me incendeia Não há sinal de cais, mas tudo me acalma No seu olhar

Você parece comigo Nenhum senhor te acompanha Você também se dá um beijo, dá abrigo

Flor nas janelas da casa Olho no seu inimigo Você também se dá um beijo, dá abrigo Se dá um riso, dá um tiro

Não quero ter mais sangue morto nas veias Quero o abrigo do abraço que me incendeia Não há sinal de paz, mas tudo me acalma No seu olhar

Não quero ter mais sangue morto nas veias Quero o abrigo da sua estrela que me incendeia Não há sinal de sol, mas tudo me acalma No seu olhar

Se quiser continuar ouvindo Cruzada, aqui tem uma playlist com todas as versões que encontrei.


A noite mágica

As palavras ainda me faltam. Por mais que as cace não consigo achar os termos exatos para definir tudo o que senti, tudo o que foi o show do Morrissey, ex-vocalista do lendário The Smiths, no último dia 7 de março em Belo Horizonte. Só quem esperou por quase 25 anos por um show que achou que nunca poderia assistir pode (pode, não quer dizer que consiga) chegar perto de imaginar o que foi.

Fui apresentada aos Smiths através de There Is A Light That Never Goes Out quando tinha 14 anos, nos idos de 1986, e foi essa música que me salvou da mediocridade cultural do senso comum. Isso pode parecer meio elitista e arrogante, mas é justo o contrário. Sou proletária, filha de proletários, e se dependesse do que a indústria cultural de massas oferece à minha classe jamais teria ouvido Smiths ou tido acesso a outro tipo de cultura que não a massificada e massificadora. Naquele tempo ou se comprava os discos ou não se ouvia nada diferente do que tocasse no rádio.

Quando fiquei sabendo dos shows do Morrissey no Brasil este ano nem me animei. Sabia que não era pra mim. Além de estar falida, sem casa — I never never want to go home/ Because I haven’t got one/ Anymore — e meio que em trânsito, não imaginava estar em nenhuma das três capitais contempladas para receber o show — Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo.

Foi aí que a mágica começou a acontecer… Morrissey cancelou o show em Porto Alegre e anunciou Belo Horizonte no lugar. A grana que esperava receber (pela qual ainda espero) para poder sair de BH não caía nunca na conta (da Renata, né… porque eu sou tão marginal que nem conta em banco tenho) e eu fui adiando a partida, adiando… Um amigo de BH com quem não falava há alguns meses (ele estava sumido, passeando no subúrbio do senso comum — aquele mesmo do qual o Smiths me salvou), voltou a estabelecer contato e no meio de uma conversa boba ele me convidou para ir no show do Morrissey com ele — Take me out tonight/ Where there’s music and there’s people/ Who are young and alive. Juro que não levei a sério, embora ele costume ser assertivo e falar sério. Passaram uns dias e ele postou no meu mural no feicibúqui os ingressos já comprados. Meu queixo se esfacelou no chão e foi só aí que comecei a acreditar que iria mesmo realizar um sonho que de tão antigo nem alimentava mais.

Aí começaram os problemas… Quem nunca, né? De repente não sabia nem se teria onde ficar, dormir até o dia 7. Dias de agonia e por um triz não desisto de ir no show. Na última hora as coisas se resolveram (com a ajuda de três queridas amigas) e eu ficaria em BH o tempo exato de ir ao show, respirar, me recuperar e ir embora. Foi quase assim, exceto por algumas trapalhadas minhas, que se não existissem eu as inventaria ali na última hora.

O local do show é horrível e a acústica é um lixo, mas o Morrissey e sua banda superaram todos os problemas. Ele é um showman e sua banda consegue reproduzir no palco o que os Smiths faziam em estúdio. Isso eu não teria visto nem se tivesse ido a um show deles nos anos 80 —  quem é dessa época deve lembrar da decepção que era ouvir algumas músicas com mais efeitos reproduzidas ao vivo –. Desde o início do show parecia estar flutuando, em outro mundo, que misturava tempo e espaço naquele momento ali.

Gosto da carreira do Morrissey após Smiths, ele conserva muito da sonoridade e da inquietação nas composições, aquele tom meio dark, depressivo dos anos 80. Mas mesmo curtindo demais o show todo eu esperava ansiosamente pela música mágica, e ele deixou a maioria das seis músicas que tocou do Smiths para o final (set list show BH).

No primeiro acorde de There Is A Light That Never Goes Out as lágrimas brotaram. Era um misto de alegria e tristeza, saudade e reencontro, vontade de sumir e explodir tudo-ao-mesmo-tempo-agora. Eu a chamo de “a música mágica” (tenho um playlist salvo no meu pc apenas com ela, repetida diversas vezes) porque é a música preferida do Calvin, a música que o acalma. Ele adora Smiths. Eu o ensinei a gostar. E foram muitas as nossas madrugadas cantando e dançando There Is A Light That Never Goes Out repetidamente (é… não é fácil nos aturar). Estou há tanto tempo longe do Calvin que a saudade me rasga e tê-lo de volta nesse momento foi mágico. Teve uma hora que fechei os olhos e o consegui imaginar ali comigo, cantando e dançando. Só por isso o show inteiro já valeria — Take me out tonight/ Take me anywhere/ I don’t care, I don’t care, I don’t care/ Just driving in your car/ I never never want to go home/ Because I haven’t got one.

Saí de Belo Horizonte flutuando (mesmo com todos os percalços depois), nessa vibe que ainda não saiu de mim. Domingo, além de assistir pela web ao vivo ao show de São Paulo, consegui baixar um dos shows que Morrissey fez no Chile e mesmo sendo outro set list ainda não consegui parar de ouvir, porque There is a light that never goes out… There is a light that never goes out… There is a light that never goes out…

O meu amigo de BH não faz ideia — e mesmo que tente explicar jamais conseguirei — do bem que me fez. Sim, “to die by your side/ well, the pleasure and the privilege is mine“, senhores Erik e Morrissey. 🙂

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PS: No final da música mágica, sexta música nesse show do Chile, ele vai até perto da plateia e abraça uma fã. Morri de inveja!!!


Entrevista (atrasada) com Ivan Lins

Tive o prazer, a sorte e a honra de entrevistar Ivan Lins em Pelotas logo após seu show no Theatro Guarany em 16 de novembro de 2010. Ivan iniciou em Pelotas a turnê Perfil para comemorar seus 40 anos de carreira. A entrevista foi tão bacana, mas tão bacana, e o Ivan foi tão gentil e tão disponível, respondendo todas as minhas perguntas que não sentia necessidade de publicá-la. Fiquei tão satisfeita com essa entrevista que a guardei durante mais de um ano só para mim. Pensem que o cara tem quatro décadas de carreira e entrevistas, reconhecimento no Brasil e consagração no exterior e em nenhum momento emitiu opinião sobre minhas perguntas ou se mostrou impaciente. Ivan é um artista ímpar e um ser humano simples e humilde, me respondeu olhando nos olhos (ai ai…), concentrado nas perguntas e no papo.

Não me acho grande coisa como entrevistadora — sou do tipo que fica interrompendo as respostas com pitacos, chata mesmo –, estava morrendo de dor de cabeça, esperei até a última tia velha aflita tirar foto com ele numa fila interminável de fãs no camarim após o show, cheguei a me perder no meio da entrevista (quem não se perderia diante daquele sorriso há apenas meio metro de distância?) e mesmo assim ele foi paciente e atencioso. Um gentleman, comigo e com todos. Quem nunca se apaixonou pelo entrevistado e guardou a entrevista só para si, né? Jornalista doida é isso. 😛

Falamos de música, política (e lembrem-se sempre que a entrevista foi feita em novembro de 2010), sobre o desafio de compor durante a ditadura militar, sobre o Ministério da Cultura, futebol… Confiram.

percebam a distância e avaliem o meu "nervosismo"... meu rosto queimava.

Tem diferença fazer sucesso no Brasil e no exterior?
Existe uma certa diferença pelo fato de que o sucesso que se faz no seu país é um encontro com suas raízes, com os motivos pelos quais levaram você a se dedicar tanto à sua arte. Sou filho desse país, tudo que eu sei, tudo que sou eu devo a essa terra, a esse povo, a todas as pessoas com quem eu tive a oportunidade de conviver, com todo o carinho que eu recebi através dos meus shows. Esse sucesso para mim é o melhor de todos. O sucesso que a gente faz lá fora a gente simplesmente está levando o nosso país para lá, eu canto meu país lá fora, eu sempre levo o que há de melhor daqui para falar lá, porque meu país é um lugar especial, de um povo muito especial. O sucesso que a gente faz lá fora é diferente, não sou eu sozinho, sou eu e o meu povo todo.

Em todas as profissões tem aquelas coisas que fazemos com mais prazer e outras que fazemos pela obrigação no exercício do ofício. O que mais te dá prazer na tua profissão?
É a liberdade que eu tenho para desenvolver a minha arte. Eu criei o meu próprio espaço e faço com que esse espaço seja mais amplo possível e ao mesmo tempo eu não fecho nem portas e nem janelas. Estou sempre aberto a tudo que possa vir. A beleza não é um privilégio meu, é de todas as pessoas. Todos têm um pouco de beleza dentro delas…
Todos têm a capacidade de ver o belo…
Isso… Eu sou muito fã dos meus colegas e me permito deixar influenciar por eles, e trabalho tanto com os mais velhos quanto com os mais jovens. Talvez esse seja o segredo. Eu me permito muito que os jovens me contaminem.

Ivan Lins sempre convida para seus shows um novo talento e em Pelotas o escolhido foi Leandro Maia, que além de mostrar uma composição sua, cantou "Bilhete" com Ivan na hora do bis

(Conheçam o trabalho do talentoso Leandro Maia em seu blog Palavreio e entendam porquê ele foi apadrinhado por Ivan Lins)

Falaste em liberdade de criação. Começastes numa fase difícil. Como foi criar e compor durante a ditadura,quando era preciso andar na corda bamba para não ser preso ou não ser censurado?
Foi um exercício de criatividade. Eu até acho engraçado isso, é um paradoxo. Assim como dizem que a dor é cafetina da arte, os momentos difíceis são também os momentos em que arte tem que se desenvolver com mais criatividade.
Tirar leite de pedra…
Exatamente. Os anos 60 e 70 foram o auge da criatividade da música no Brasil.

Gostas de futebol. Tricolor, né?
Eu sou tricolor, lá e aqui (infelizmente para os colorados).
(Tá tudo bem, não sou colorada…)
Até que ponto és torcedor? Vai a estádio, assiste jogo na televisão…?
Vou a estádio, assisto na tevê, fico nervoso, sofro, xingo.
Vai ser campeão?
Olha, não sei. Não consigo prever. Não acho que o Fluminense tenha o melhor time. Tem um grande técnico (Muricy Ramalho), mas não tem o melhor time. Acho que tem times melhores jogando. O time do Grêmio é muito bom, o time do Internacional é um time muito bom. Eu acho que os dois são melhores que o do Fluminense, apesar de estarem mais atrás na tabela. Sou um apreciador do bom futebol, gosto do espetáculo. Meu time não oferece um grande espetáculo nos jogos, tem ganho inclusive sem fazer boas apresentações, eu tenho gostado mais do time do Botafogo por exemplo. O time do Santos também tem oferecido um melhor espetáculo. Gostaria muito que o Fluminense fosse campeão, mas não sei se vai conseguir.

(para a alegria de Ivan e dos tricolores cariocas o Fluminense foi o campeão brasileiro de 2010)

Teu nome foi incluído numa carta de artistas em apoio a José Serra e depois teve um desmentido. Como foi isso? (o segundo turno das eleições de 2010 tinha acabado de acontecer)
Foi oportunismo do pessoal que trabalhava para o Serra, assim como fizeram para a Dilma também. Incluíram meu nome numa lista de apoio à Dilma ainda no primeiro turno. Mandei desmentir e disse que ia votar na Marina. Eles tiraram, tudo certo. Depois no segundo turno tava quieto, não ia votar mais em ninguém, eu anulei meu voto no segundo turno porque os dois candidatos deveriam se chamar Pinóquio e Pinóquia porque estavam mentindo demais pro meu gosto e eu não gosto de gente mentirosa, é uma das coisas que mais detesto. Então, anulei meu voto. Mas quando apareceu meu nome lá (lista de apoio à Serra) eu fiquei passado, muito passado. Não gosto do Serra, nunca gostei dele e se me perguntassem ‘de quem você gosta menos’ responderia Serra.

Como foi ter um colega como ministro da Cultura? Como ficou a música no período em que Gilberto Gil foi ministro?
Eu acho que a gestão do Gil foi fundamental para que a classe criasse mecanismos próprios para poder defender seus direitos e isso só começou com Gil no ministério, apesar do monte de críticas que fizeram a ele e que particularmente achei muito injustas, porque o Ministério da Cultura não é o ministério da música, o que falta é uma secretaria da música e essa é uma reivindicação, uma questão seríssima. De todas as artes a música é a que tem o maior poder de alcance, inclusive internacional, e por isso a necessidade de uma secretaria especial, mas isso não quer dizer que ela tenha ou vá ter prioridade de verbas, pelo contrário, porque eu acho que a cultura começa com a preservação das raízes, da memória, do patrimônio. Não existe um país se não tiver sua memória preservada. Esse é o grande trabalho que precisa ser feito no Brasil. O Brasil é um país que se distrair perde a memória fácil, diferentemente dos países da Europa. Nós tivemos muito do nosso patrimônio dilapidado, destruído dentro das grandes cidades e eu acho que esse é um trabalho que tem que ser feito e exige um investimento muito alto. Esse foi um dos trabalhos que foram feitos, principalmente a partir de Gil e do Juca Ferreira, que é o grande responsável por essa área. Juca Ferreira é o homem que está fazendo o melhor trabalhado de toda a história de preservação de memória, de patrimônio e de folclore desse país. O Brasil tem manifestações folclóricas que estão desaparecendo e as novas gerações não estão acompanhando, e o grande esforço para que essas manifestações se preservem foram iniciadas a partir do Gil. Mas essas iniciativas não chegam ao grande público, não chegam aos interessados. Cada um olha muito pro seu próprio nariz… os músicos, o pessoal do teatro, do cinema… Todo mundo só querendo ver o seu lado, mas ninguém pensou que antes disso o país precisa ter suas raízes e essências preservadas. Se eu fosse ministro também me dedicaria 80% a preservação do patrimônio e 20% ao resto. Foi isso que o Gil e o Juca fizeram e apanharam de todo mundo. Eu sou um dos grandes defensores do trabalho feito e se o Juca Ferreira puder ficar no próximo governo sou totalmente favorável.

(Infelizmente, Juca Ferreira não ficou no Ministério da Cultura)

Estás sempre compondo, é um hábito?
Eu sou muito compulsivo para criar, mas ultimamente não tenho tido é tempo. Tenho trabalhado demais e é uma consequência da crise financeira e de mercado da música brasileira. As grandes gravadoras acabaram, a pirataria de uma certa forma acabou com um lado da indústria, o outro lado, da internet com os downloads (que é a chamada pirataria informal) prejudica muito. Essa principalmente me prejudica bastante.
Não és tão popular para vender em camelô…
É… Exatamente. Então hoje eu sou obrigado a trabalhar mais para pagar minhas contas e não tenho tido muito tempo para compor, infelizmente.

Gostas de viajar pelo interior, conhecer o país nessa rotina de shows?
Adoro viajar, adoro conhecer… Adoro conhecer a arquitetura e a história, vou a museus…
Essa é uma questão importante para ti, da preservação do patrimônio…
Tenho muita vontade de fazer um trabalho pelo Brasil, se alguém financiasse, fazendo documentários, criar movimentos de preservação. Eu sou um entusiasta do folclore brasileiro, da preservação das nossas raízes. Esse país é incrível! E olha que eu conheço só 20% dele.

Se fosses te definir… Quem é Ivan Lins?
Eu sou um cidadão brasileiro, um bom cidadão brasileiro, compromissado com a beleza. Tenho um compromisso com a beleza no seu sentido real, amplo, interior. E por amar demais esse país eu me indigno e sou muito crítico. Eu sou um brasileiro que cobra e ama muito.

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(Fotos Murilo Paulsen, Portal VIP Pelotas)

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PS: Agradecimento especial aos queridos Alex e Martha Fonseca, sem os quais não teria chegado nem perto do Ivan Lins.

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Para sempre Satolep

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Dia 22 — Livro favorito você teve que ler para a escola

Dia 22 — Um livro que é uma música (ou duas, ou três…)

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Adaptando o item  “um livro favorito que se tornou música” do já adaptado desafio do Pádua Fernandes, cheguei a um livro que é uma música ou uma música que é um livro. Enfim, Satolep, a música que abre o terceiro disco do cantor, compositor e escritor pelotense Vitor Ramil (“A paixão de V segundo ele mesmo“, de 1984), acabou virando livro. Ou, não.

Satolep é o seu terceiro livro, foi lançado em 2008, esteve entre os dez romances finalistas ao Prêmio Jabuti de 2009, levou oito anos para ser escrito e tem como personagem central não o narrador mas seu pano de fundo, a cidade de Pelotas (terra natal de Vitor e minha).

O fotógrafo Selbor retorna a “úmida e fantasmática” Satolep (palíndromo da palavra Pelotas) no dia em que completa trinta anos. Nessa cidade construída na imaginação de Vitor Ramil, seu protagonista e narrador encontra personagens reais da história pelotense como o escritor João Simões Lopes Neto, o poeta e jornalista Francisco Lobo da Costa e o cineasta Francisco Santos (autor de um dos primeiros filmes de ficção do Brasil). O encontro de Selbor com seu passado nas ruas de Satolep lá pelos anos 20 do século passado é de certa forma o encontro de Vitor com o seu passado no retorno a Pelotas, quando decidiu morar em sua terra natal e manter ao mesmo tempo uma carreira nacional — o que segundo ele não é fácil, já que passa quase sete meses por ano longe de casa. Selbor foi inspirado num fotógrafo que realmente existiu e documentou a cidade de Pelotas no início do século XX. Suas fotos, publicadas no Álbum de Pelotas (1922), um livro real, da Pelotas real, organizado por Clodomiro Carriconde que serviram como ponto de partida para a história.

Uma espécie de diário de viagem, um relato indireto dessa minha volta a Satolep“. As imagens são intercaladas à narrativa sempre acompanhadas de textos breves, instantâneos. São esses curtos relatos que, seguindo os passos do narrador pela cidade, vão narrando poeticamente a sua trajetória. Deu pra entender? Uma espécie de narrativa em que o narrador faz uma auto narrativa e vai revelando sutilezas com um espírito lúdico e divagante, forjada na umidade de Pelotas.

Trechos de Satolep:

“A umidade de Satolep é a maior do mundo. Nela João Simões Lopes Neto viu as faces possíveis da M’boitatá em cruzes de esquinas iluminadas.”

“O calçamento perfeito e o traçado rigoroso das ruas o excitaram pela manhã; à tarde, a delicadeza das fachadas contra o horizonte selvagem da planície o emocionou; quando escureceu, superfícies úmidas espelhadas numa geometria de sombras cambiantes puseram-no a imaginar e conceber tantas coisas que, embora falasse sem parar, não encontrava tempo de descrevê-las para mim.”

“Satolep revelada na radicalidade dos ângulos retos; infalível como o relógio alemão na torre sobre o mercado; espalhando-se ao redor como um argumento inexorável.”

Disse Vitor numa entrevista, sobre Satolep (o livro) e sobre si:

“No livro, o personagem João Simões Lopes Neto diz que não é fácil dizer-se artista. Eu sinto isso. E olha que desde a infância eu não me imagino senão como um artista. Ser artista é um projeto de vida em que ninguém acredita, só tu. O artista abre mão dos movimentos mais fáceis, como cursar uma faculdade, ter emprego normal, salário. Ele sabe que terá que viver daquilo que criar. Quem garante que vai dar certo? Tomei a decisão de ser artista muito cedo, mas até hoje não estou muito seguro dela, embora eu saiba que estou inútil para qualquer outro trabalho. Eu já não conseguiria começar em outra profissão, tipo normal, com horário. Isso jamais vai me acontecer. Meu personagem João Simões (em Satolep) diz que um artista pode se dizer inadaptado, mas nem todo inadaptado pode se dizer artista. Sempre me senti meio inadaptado, não talhado para as coisas mais objetivas da vida. Mas sempre vacilei em me dizer um artista, em aceitar plenamente essa idéia. Acho que foi assim com João Simões. Ele tentou vários negócios, mas não foi bem em nenhum. Por que? Talvez porque fosse fundamentalmente um artista. Mas talvez fosse difícil para ele se dizer um artista, ainda mais naquela época. No contexto da vida cultural pelotense de então, de saraus, sinhazinhas tocando piano, coisas amadoras, não havia muita chance de a obra dele ser avaliada como deveria. O ponto de vista dos outros sobre ele sem dúvida era falho, não poderia ajudá-lo na tarefa de se conhecer.”

Não sei se posso dizer que Satolep é uma música que virou livro ou um livro que é uma música — talvez nem o Vitor tenha essa resposta –, mas para quem nasceu ou viveu em Pelotas e tem no seu imaginário uma Satolep lúdica, mítica, mágica e até fantasmática em meio a tanta umidade, arriscaria dizer que sim.

Link para comprar Satolep.

Assistam o book trailer de Satolep (a música de fundo é “Noturno”) e ouça aqui Noturno completa.

Vitor Ramil inverteu o nome da cidade porque Pelotas não encaixava na métrica da música, e Satolep sim. Eu tenho toda a discografia dele e de seus três livros só não li o primeiro, “Pequod” (tem ainda “A estética do frio”, de 2004). É meu músico favorito e ouvir sua música me faz caminhar mentalmente pelas ruas de Pelotas. Quer coisa melhor do que a música que te leva pra casa?

Trecho da música Satolep:

“Só, caminho pelas ruas
Como quem repete um mantra
O vento encharca os olhos
O frio me traz alegria
Faço um filme da cidade
Sob a lente do meu olho verde
Nada escapa da minha visão.
Muito antes das charqueadas
Da invasão de Zeca Netto
Eu existo em Satolep
E nela serei pra sempre
O nome de cada pedra
E as luzes perdidas na neblina
Quem viver verá que estou ali.”

Ouça aqui a música Satolep completa.

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Aqui o site oficial do genial e amado Vitor Ramil.

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No desafio 30 livros em um mês a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Marília do Mulher Alternativa, a Grazi do Opiniões e Livros, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Juliana do Fina Flor, o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo, a Renata do Chopinho Feminino, a Júlia do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas e o Eduardo do Crônicas de Escola. E tem mais a Fabiana que posta em notas no seu perfil no Facebook.

A Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel e a Rita do Estrada Anil já terminaram o desafio.

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O amanhã colorido

Era fã da Cidadão Quem desde antes da banda, quando o Duca Leindecker lançou um disco solo quase todo instrumental lá no final dos anos 80. Um dia fuçando o site da CQ, que achei lindo logo de cara, a primeira música selecionada para tocar no playlist era (e ainda é) O Amanhã Colorido, numa versão com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre gravada em estúdio. Fiquei tão encantada que ficava ouvindo repetidas vezes, exatamente como fiz enquanto escrevia esse texto.

Duca Leindecker

Tudo nessa canção a descreve como uma declaração de amor. Um testamento tão especial que a única pessoa em quem conseguia pensar quando a ouvia era no Calvin. Descobri que Duca a havia escrito para o seu filho Guilherme quando li essa declaração: “Eu gostaria que ele soubesse como eu vejo a vida. Melhor do que dinheiro ou qualquer coisa que eu deixe, é a minha forma de ver a vida”.

A canção ganhou um contorno tanto mais mágico e especial quanto doloroso, porque eu adoraria poder dizer todas essas coisas um dia para o meu filho. E que ele pudesse entender. Mas tanto eu quanto o Calvin só podemos sentir tudo isso. Ele nunca será independente ao ponto de jogar bola, descobrir um ideal ou até mesmo quebrar o pé numa estripulia própria de guri (espero que nunca quebre mesmo porque vai ser muito difícil convencê-lo a ficar quieto o tempo que demora um osso quebrado para soldar).

Ele não fará ideia de quanto tempo esperei para vê-lo sorrir, para poder seguir e o quanto esse tempo foi doloroso. Mas acho que ele prefere vermelho. Ou eu que prefiro e tendo a achar que ele também prefere. Ele canta várias das canções que ensinei ele a gostar e que ouvíamos juntos, e muitas são composições do Duca. Sinto falta da mão dele apertando a minha e nunca saberei se ele guarda nossos momentos na lembrança e nem se me perdoará pelo meu afastamento. Nunca o verei correndo em direção ao seu futuro, mas sempre estarei aqui para amá-lo mesmo que à distância. Espero que ele nunca desista de mim porque jamais desistirei dele.

Mesmo amando essa canção, foi muito difícil ver a vida passar pelo espelho e não ver todo o resto acontecer. Certamente o tempo está no pensamento e espero que o amor que nos une trasforme esse nosso hiato numa fração de segundo quando nos reencontrarmos. Vivo por esse dia e espero correr o suficiente para transformar nosso presente monocromático num futuro cheio de cores.

Não tenho o talento do Duca para expressar meus sentimentos e por mais que escreva  nunca me farei entender completamente. Pelo menos não com relação ao Calvin. Então, ouçam essa versão ainda mais linda de O Amanhã Colorido com a Pouca Vogal (dupla formada com Humberto Gessinger), que o resto serão histórias a serem contadas depois.

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Olha a luz que brilha de manhã
Saiba quanto tempo estive aqui
Esperando pra te ver sorrir
Pra poder seguir

Lembre que hoje vai ter pôr-do-sol
Esqueça o que falei sobre sair
Corra muito além da escuridão
E corra, corra…

Não desista de quem desistiu
Do amor que move tudo aqui
Jogue bola, cante uma canção
Aperte a minha mão

Quebre o pé, descubra um ideal
Saiba que é preciso amar você
Não esqueça que estarei aqui
E corra, corra…

Azul, vermelho
Pelo espelho
A vida vai passar
E o tempo está no pensamento

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Tempo de renascer

Em meio a tantas turbulências e portas que se fecharam e outras que eu mesma precisei fechar, um dia fechei os olhos e tentei escutar o ritmo em que meu coração batia. Era um teste para saber das avarias. E foi aí que voltei a sorrir. Depois de um longo período de depressão – quem viu o surgimento desse blog sabe muito bem dessa história – e de um processo de recuperação que parecia não ter fim, finalmente consigo me reconhecer. Estou inteira novamente. \o/
E como já havia adiantado mesmo em meio à turbulência, estou construindo um sonho imenso e sem muito tempo para ficar sofrendo desilusões amorosas. É isso, sou mais prática do que romântica. E com licença que o mundo está a minha espera e já estou atrasada.

“…
Só quero saber
Do que pode dá certo
Não tenho tempo a perder
…”
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(Sérgio Britto / Torquato Neto)

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Tempo de turbulência

Passei por um período de verdadeira convulsão emocional. Além do excesso de trabalho e de estar me dedicando mais ao outro blog, o Pipoca Comentada, parecia estar bloqueada. Aqui escrevo o que penso e manifesto meu pensar do jeito que o sinto. Alguns textos são todo coração e foi justamente aí que ocorreram muitas turbulências. Entre afetos rejeitados, sonhos ameaçados e esperança na UTI era impossível escrever. Nem sabia o que estava sentindo para poder falar a respeito.

“…
Enquanto sofre o coração intui,
Que ao mesmo tempo que machuca o tempo,
O tempo flui

Quem sabe o que se dá em mim,
Quem sabe o que será de nós…
O tempo que antecipa o fim,
Também desata os nós
…”
(Fred Martins / Alexandre Lemos)

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Tempo de fechar portas e me recolher

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Nos últimos dias (até ontem) essa música da Ana Carolina foi perfeita para traduzir fatos e sentimentos. Explica também o meu silêncio e ausência desse espaço nesse período.

“…
E fui fechando o tempo, sem chover
Fui fechando os meus olhos, pra esquecer
Quem é você?
…”
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(Ana Carolina)

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Vou viajar contigo essa noite…

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“Vou viajar contigo essa noite
(…)
Quero sentir o vento das esquinas
Circulando a calma do meu íntimo
Entre a poeira das palavras
Subir na tua voz em espiral
(…)
Eu, astronauta lírico em terra
Indo a teu lado, leve, pensativo”
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(Vitor Ramil)
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Te vi…

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“…
Te vi, te vi, te vi
Yo no buscaba a nadie y te vi
…”
(Un Vestido Y Un Amor, Fito Paez)
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Locos Por Ti, America!


Just Like Heaven em duas versões

Show me how you do it
And I promise you, I promise that
I’ll run away with you
I’ll run away with you
(Robert Smith)
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Trinta anos sem Ian Curtis

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A história do rock é repleta de suicídios e/ou overdoses. Faz parte da cultura rock’n roll. Hoje, 18 de maio, fazem 30 anos que Ian Curtis se enforcou em casa, deprimido e pressionado pelo sucesso crescente de sua banda. O Joy Division mudou a cena do rock mundial e abriu espaço para o rock gótico, existencial do anos 80, no cenário pós-punk – o mundo pré-jurássico dos emos. A história de Curtis pode ser vista no filme Control (sinopse/comentário logo abaixo).
Leia mais sobre a vida de Ian Curtis e sua influência no rock aqui.
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Control
O filme, em preto e branco, conta a história de Ian Curtis, o vocalista da lendária banda inglesa Joy Division. Ele se matou aos 23 anos, em maio de 1980. Com apenas dois álbuns lançados, o Joy havia mudado a história da música com sua combinação pós punk, dark e letras pessoais, introspectivas apoiadas por um som rígido e cavernoso. Inspirado na obra “Touching from a Distance”, escrita por Deborah Curtis, viúva de Ian, o longa traz um retrato bastante pessoal do vocalista. Seu casamento precoce, o nascimento do filho, seus ataques epiléticos, incluindo um no palco, e a medicação que ele passou a tomar – frequentemente misturada com álcool –, somado a um caso extraconjugal e a fama, são os elementos que acabam levando-o a morte. Ian enforcou-se um dia antes do início da primeira turnê da banda pelos Estados Unidos.
A história do filme começa com o aperto de mãos entre o fotógrafo Anton Corbijn e os integrantes do Joy Division. Foi em 1979, numa estação de metrô em Londres, após seção de fotos de dez minutos que se tornou um dos ensaios fotográficos mais famosos do rock.
É o primeiro longa-metragem do holandês Anton Corbijn, após prestigiada carreira como fotógrafo e diretor de videoclipes, que tem em seu currículo U2, Nirvana, Depeche Mode e R.E.M. “É um filme sobre um garoto que tinha um sonho e tentou realizá-lo, mas termina num ponto em que ele se encontrava infeliz. É uma história de amor, com músicas boas”, explicou o diretor.
Clássicos como “Love will tear us apart”, “Atmosphere”, “She’s lost control” (que inspira o título do filme) e “Transmission” fazem parte da trilha sonora. Vencedor do prestigiado Camera D’Or do Festival de Cannes em 2007 (onde foi aplaudido de pé, em raro momento de unanimidade), ganhou também os prêmios de Melhor Performance de Ator Britânico para Sam Riley e Melhor Filme no Festival Internacional de Edimburgo.
Control humaniza o mito de Ian Curtis e constrói um retrato honesto e emocionante de uma das figuras mais lembradas na história do rock moderno. As cenas nas quais o Joy Division apresenta-se ao vivo são dos próprios atores tocando seus respectivos instrumentos, não há dublagem. Imperdível. Drama, 122 min.
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Tentando ser metade do inteiro que eu sinto…

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Pra falar verdade, às vezes minto
Tentando ser metade do inteiro que eu sinto
Pra dizer as vezes que as vezes não digo
Sou capaz de fazer da minha briga meu abrigo
Tanto faz não satisfaz o que preciso
Além do mais quem busca nunca é indeciso
Eu busquei quem sou, voce pra mim mostrou
Que eu não sou sozinha nesse mundo.
(Fernando Anitelli)
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Em meio ao lodo, uma flor de lótus

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Quem diria que o final idiota de uma novela completamente idiota me inspiraria algo de bom. Pois aconteceu, e me inspirou a escrever depois de quinze dias ausente deste espaço. Depois do depoimento à la Joseph Climber do maestro João Carlos Martins, no apagar das luzes da novela Viver a Vida (Rede Globo), ele regeu a sua Orquestra Bachiana Filarmônica na apresentação daquela que considero a mais linda música da história da humanidade, a Sinfonia nº 9 de Ludwig van Beethoven. Confesso que depois de ouvi-la, tudo o mais me parece medíocre, até mesmo Chico Buarque ou Tom Jobim.

página manuscrita do quarto movimento

Esta foi a última sinfonia completa composta por Beethoven, concluída em 1824 quando já estava quase completamente surdo, perturbado mentalmente e que revolucionou a história da música. Foi a primeira vez que a voz humana ganhou o mesmo destaque que os instrumentos numa sinfonia. Beethoven incluiu parte do poema An die Freude (“À Alegria”), uma ode escrita por Friedrich Schiller (e por isso o quarto movimento da sinfonia é popularmente conhecido como “Ode à Alegria”), cantada por solistas e um coro em seu último movimento. Ele também mudou o padrão das sinfonias clássicas, colocando o ‘scherzo’ antes do movimento lento. Beethoven repetiu isso em outras composições, mas a única (e primeira) sinfonia composta assim, foi a nona.

Apresentada pela primeira vez em 7 de maio de 1824, no Kärntnertortheater, em Viena, Áustria, tendo como regente Michael Umlauf, diretor musical do teatro. Beethoven estava afastado da regência pelo estágio avançado da surdez, mas teve direito a um lugar especial no palco, junto ao maestro.
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Este trecho do filme “Minha Amada Imortal” (1994), de Bernard Rose, com Gary Oldman interpretando o maestro mostra essa primeira apresentação da sinfonia. Nesse filme podemos ter uma ideia do (des)temperamento de Beethoven, sua genialidade em confronto com o humano, e como essa sinfonia foi composta. Ela não só causa uma emoção indescritível, como a sua história é quase inacreditável. E pensar que ele mesmo jamais pode ouví-la…
A flor de lótus foi a possibilidade de milhões de pessoas, sempre aleijadas da cultura, terem acesso à música clássica em pleno horário nobre (sic) da tevê. E com direito à reprise. A trajetória do maestro João Carlos Martins, de fato, é uma história de amor à música e está se transformando na história de alguém que tem vontade de tornar popular o gosto pela música e pela cultura erudita. Merece e tem todo o meu respeito e admiração. Já a Rede Globo e a sua pseudo tentativa de fazer pensar através das novelas é o lodo, onde quase nunca nascem flores.
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Veja meu bem…

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“…
Essas feridas da vida Margarida
Essas feridas da vida, amarga vida
Pra você gostar de mim”
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(Vital Farias)
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