A história é para ser mudada

O aniversário do AI-5 e seus reflexos e sombras na democracia

Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência.” – Jarbas Passarinho, na reunião que decidiu os termos do Ato Institucional n.º 5 se dirigindo ao então presidente, o general Arthur da Costa e Silva

A gente vive a comparar tudo, inclusive épocas e fatos. Embora para a esquerda uma frase sobre a repetição da história viva ressoando e sendo repetida, ela é mito. A história não se repete. Mudam as pessoas, seus ânimos e consciências social e política, as condições, a conjuntura, as posições no tabuleiro. A observação de Marx fala sobre o uso teatral de referências positivas ou mitos do imaginário popular para enganar o povo. De novo: a história não se repete.

Temos falado, escutado, escrito e lido muito sobre golpe e as comparações deste com o outro de 64. Só que aquele foi um golpe no amplo sentido da expressão. Teve tanque na rua, presidente deposto, regime deposto, democracia e direitos constitucionais suprimidos. Esse de agora foi um golpe institucional, “branco”, usando (ou deturpando, como preferirem) os meios da própria democracia. Não é a primeira vez, e nem será a última, que a democracia é usada contra o povo, contra seus direitos, vontade, legitimidade.

Hoje é aniversário da instituição da ditadura em sua face mais dura e perversa no Brasil. Daí que com a votação da PEC 55 (ex-PEC 241) em segundo turno no Senado Federal não faltou quem a comparasse ao decreto do AI-5 naquele fatídico 13 de dezembro de 1968. Mas percebam, por favor, que há 48 anos o Congresso foi fechado, qualquer reunião com mais de duas pessoas numa esquina à noite poderia terminar em prisão e tortura, Habeas Corpus foi cancelado. Se a prisão não fosse registrada havia uma imensa possibilidade do preso ou presa nunca mais ser visto. Nessa toada, milhares de opositores (ou não) à ditadura estavam sendo caçados, torturados, assassinados e desaparecidos.

Veio a anistia, voltaram os exilados, veio a abertura, eleições diretas, constituinte, mas a tortura e o desaparecimento permaneceram, institucionalizados como prática das polícias, e nem com a promulgação da Constituição Federal em 1988 com todas as garantias de Direitos Humanos isso mudou. Para usufruir e reivindicar direitos humanos é preciso primeiro ser reconhecido como humano, e essa é uma realidade ainda muito distante para pretos, mulheres e LGBTs pobres. E claro que a linha tênue que define quais humanos são de fato e de direito humanos é a classe social. Se não temos centros especializados de tortura é porque é melhor não ter um local específico para isso, mesmo sabendo que quase toda delegacia ou unidade policial deste país tem uma salinha para interrogatórios reservados. Já dizia o Marcelo Yuka que “todo camburão tem um pouco de navio negreiro“. Se os desaparecidos da democracia vão se amontoando no esquecimento é porque esquecemos também dos desaparecidos da ditadura.

Não tenho dúvidas que os ataques a direitos duramente conquistados nos últimos 30 anos, e alguns até bem mais antigos além da atual falta de pudor em defender a volta da ditadura, tem uma ligação íntima com a impunidade dos crimes cometidos pelo Estado contra seus cidadãos durante da ditadura civil-militar (vou continuar usando esse termo porque, embora o poder fosse exercido pelas Forças Armadas, havia apoio e participação civil no núcleo central da ditadura 1964-1985). As pessoas sequer sabem o que de fato aconteceu durante a ditadura e, infelizmente, todo o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, concluído há dois anos, foi solenemente ignorado. O atual governo, fruto de uma gambiarra na democracia, vem dia a dia desestruturando todo o trabalho e esforços em prol da justiça de transição. Não somos mais apenas o país mais atrasado nesse campo, somos empecilho para os outros países do cone sul, também vítimas de golpes militares, que abriram seus arquivos, reviram suas leis de anistia e estão punindo torturadores e assassinos.

Sim, há várias violações aos direitos constitucionais e democráticos que atentam contra a liberdade de expressão, manifestação e organização. Mas, pasmem!, elas foram aprovadas em lei dentro do trâmite do nosso regime “democrático”. A naturalização com que as polícias reprimem apenas as manifestações de trabalhadores e estudantes de esquerda e/ou contrários ao status quo é só o derrubar das máscaras. Com exceção de um breve período entre a abertura em 1985 e meados da década de 90, sempre convivemos com a repressão policial na rua. E mesmo nesse período de trégua, regionalmente a polícia sempre esteve aí para bater.

E é por isso que precisamos continuar lutando pela abertura dos arquivos secretos da ditadura militar, pela busca dos corpos e restos mortais dos desaparecidos políticos e pela revisão da Lei da Anistia para que se possa processar e punir criminalmente as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro entre 1964 e 1979) e pela manutenção de direitos conquistados a tão duras penas e perdas.

Talvez o 13 de dezembro de 1968 nunca tenha acabado. Talvez a tal abertura e a própria constituição de 1988 tenham sido apenas farsas encenadas dentro daquilo que denunciava Marx. Fato é que democracia não é ausência de conflito e muito menos ausência de repressão. E quem precisa de uma ditadura quando se tem uma democracia que a representa tão bem, né? Fato é que em sabendo que a história não se repete ela está aí para ser mudada e revolucionada, para quando pudermos e quisermos.

charge5

 

*texto para a mobilização #desarquivandoBR

Sobre Niara de Oliveira

ardida como pimenta com limão! marginal, chaaaaaaata, comunista, libertária, biscate feminista, amante do cinema, "meio intelectual meio de esquerda", xavante, mãe do Calvin, gaúcha de Satolep, avulsa no mundo. Ver todos os artigos de Niara de Oliveira

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