Texto publicado no Jornalismo B Impresso
Desde que o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos foi apresentando pelo governo federal no final de 2009 (ainda no governo Lula) muita coisa mudou. O Supremo Tribunal Federal, indo na contramação dos países do cone sul, não só confirmou a Lei da Anistia como a estendeu aos torturadores. Os governos FHC, Lula e Dilma mantiveram o sigilo eterno dos documentos da ditadura e oprojeto de lei de acesso a informações públicas (PLC 41/2010) — artimanha da presidenta Dilma Rousseff de “jogar a bola para a arquibancada quando poderia ter decidido a jogada” — tramita agora no Senado Federal e enfrenta a resistência de senadores como Fernando Collor (relator do projeto) e José Sarney. O texto da Comissão da Verdade, previsto no corpo do III PNDH foi sendo mutilado até chegarmos à “Comissão da Verdade possível”, essa farsa que vimos ser aprovada na Câmara dos Deputados na noite do de 21 de setembro em regime de urgência.
Uma coisa era termos uma comissão apurando as violações dos direitos humanos para fins históricos, para conhecimento dessas páginas ainda nebulosas da nossa história, outra é o que será feito com essas informações. Afirmava o jornalista Marcos Rolim em artigo de 06/01/2010:
“Uma “Comissão de Verdade” para investigar e reconstruir episódios de violação durante o período ditatorial é uma iniciativa elementar, óbvia até, que deveria ter sido tomada há muitos anos. Ela se situa acima de qualquer ideologia e deve implicar no levantamento de todas as violações cometidas, não importa por quem, nem em nome de que. Como uma das pessoas que auxiliou a redigir o Programa, afirmo que ela não tem a ver com punição, tem a ver com a história do Brasil e com a chance de afirmar a dignidade ali onde, até agora, só existe dor e humilhação. As vozes que se erguem contra esta iniciativa não são apenas as vozes de um passado tenebroso que, infelizmente, sequer é passado. São as vozes de um país que oscila entre a civilização e a barbárie, entre o direito e o privilégio, entre o respeito e o preconceito, entre a ordem democrática e a ordem das baionetas….e que prefere, sobretudo, a mentira.“
Mas antes de pensarmos em apurar fatos, conhecer a história, as forças reacionárias do país garantiram a perpetuação do silêncio e da impunidade das violações dos direitos humanos praticadas pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar. Entenda como funcionará a Comissão Nacional da Verdade e perceba o quanto ela será ineficaz e inócua. Aprovada às pressas, e não por acaso, durante a participação da presidenta Dilma Rousseff na assembléia geral da Organização das Nações Unidas em Nova Iorque, servirá apenas para aliviar a pressão internacional sobre o Brasil por ser o ÚNICO país do cone sul que não fez nada sobre sua ditadura. (Enquanto isso, a Argentina condena à prisão perpétua até ex-presidente)
Poucos dias antes da aprovação da CV, Cecília Coimbra do Grupo Tortura Nunca Mais já dizia em entrevista à Rede Brasil Atual: “é preferível que não haja nenhuma comissão do que essa. Da forma como está, vai ser uma mise en scène do governo federal diante de todas as pressões internacionais por investigação. O que estão propondo é uma brincadeira, não é uma comissão.” — Veja aqui matéria sobre o posicionamento dos familiares dos Mortos e Desaparecidos sobre a Comissão da Verdade e o manifesto entregue a todos os deputados antes da votação.
Não fosse tudo isso suficiente para transformá-la em farsa, a Comissão da Verdade aprovada será composta por sete membros, indicados pela Presidência da República (por emenda do DEM, nenhum dos sete membros poderá ter filiação partidária ou ocupar cargo de confiança no governo), cada um receberá um salário mensal de R$ 11 mil e terão apenas dois anos para analisar um período de 42 anos (1946 a 1988) sem previsão orçamentária para sua atuação. Veja mais detalhes na reportagem de André Barrocal na Carta Maior. Apesar da emenda do PPS para que todo o material produzido pela Comissão da Verdade seja enviado ao Arquivo Nacional e fique disponível ao público (o que não garante que será público de fato, vide o caso dos documentos sobre Vladimir Herzog), as emendas do PSOL e da deputada Luiza Erundina (eles apresentaram e defenderam as emendas propostas pelos familiares dos mortos e desaparecidos), entre elas a que previa acesso irrestrito aos arquivos, sem a manutenção de sigilos e que toda a atuação da Comissão fosse pública, não passaram.
Não nos iludamos. Mesmo que essa comissão de meia verdade seja muito atuante e supere todos os impedimentos muito bem calculados pelas forças reacionárias do país, não faremos justiça nem iremos jogar luz alguma sobre os porões da ditadura. Eles permanecerão escuros, intactos e esquecidos. Os torturadores podem continuar dormindo tranquilos e em paz e o Estado brasileiro (através dos três poderes) estende e perpetua a dor, luto e humilhação dos familiares dos mortos e desaparecidos. A tortura continua e o Brasil continua vivendo um arremedo de democracia, sem garantia e respeito aos Direitos Humanos.
Parabéns a todos os envolvidos!
.
********************************
Leia entrevista com a cientista política do departamento de Ciências Políticas da Universidade de Minnesota Kathryn Sikkink, que afirma que julgamentos e punição de torturadores auxiliam na construção do Estado de Direito. Segundo ela, julgamentos também simbolizam valores de uma sociedade democrática, e a tortura, enquanto crime contra a humanidade, não prescreve. Durante a entrevista ela dá exemplos sobre como outros países do mundo superaram suas ditaduras e reviram leis de anistia.
.
1 outubro, 2011 at 3:38 PMout
Panos quentes como sempre. Faltou coragem.
1 outubro, 2011 at 3:38 PMout
Golaço.
1 outubro, 2011 at 3:38 PMout
E por ser no governo Dilma tem ares de requinte de crueldade. Muito triste.
1 outubro, 2011 at 3:38 PMout
Só para constar, enquanto Dilma discursava na ONU e esta Comissão da Verdade era aprovada, outro projeto polêmico foi aprovado no mesmo dia e sem nenhum comentário: o Código Florestal.
1 outubro, 2011 at 3:38 PMout
[…] se esgota em 14/12/2011 — montar uma farsa e aprovar às pressas o projeto de lei que cria a Comissão Nacional da Verdade na Câmara dos Deputados (projeto ainda precisa passar pelo […]
2 outubro, 2011 at 3:38 PMout
Seu texto está muito bom, Niara, o melhor que eu já li sobre o assunto nos últimos dias. Já estou divulgando… É mesmo lamentável que as forças conservadoras desse país consigam impedir os avanços que me parecem naturais para qualquer democracia que se respeite. O que mais falta a gente fazer? Beijos
20 outubro, 2011 at 3:38 AMout
[…] no Senado Federal (último trâmite no parlamento antes de ser sansionada e entrar em vigor), não passa de uma farsa. Não bastasse a total falta de compromisso desse governo em fazer justiça aos mortos e […]
10 dezembro, 2011 at 3:38 AMdez
[…] nosso último esforço concentrado do #desarquivandoBR poderíamos dizer que muita coisa mudou. A Comissão da “Meia” Verdade passou em regime de urgência no Congresso e o Senado finalmente votou e a provou a lei de acesso a […]
12 dezembro, 2011 at 3:38 PMdez
[…] nosso último esforço concentrado do #desarquivandoBR poderíamos dizer que muita coisa mudou. A Comissão da “Meia” Verdade passou em regime de urgência no Congresso e o Senado finalmente votou e a provou a lei de acesso a […]
20 março, 2012 at 3:38 PMmar
Niara, só uma observação: sabemos que a única forma de responsabilizar os que usaram a estrutura do Estado para torturar e matar é revogando a Lei da Anistia. Ao revogá-la, se estará ‘desanistiando’ tanto os repressores de direita quanto os que, na esquerda, são acusados de sequestros, assaltos a bancos e casas comerciais, homicídios comuns (ainda que involuntários, durante algum tiroteio ou combate) e políticos e atentados imputados a esse lado. Seriam os mortos da esquerda ajudando a enterrar os vivos (também da esquerda), pois para esclarecer suas mortes e tentar responsabilizar os autores e mandantes, teriam que ‘enterrar’ os que na época também lutaram contra o sistema, mas por alguma razão sobreviveram. Enterrar, obrigando-os a responder, junto com os repressores, por seus atos. Dificilmente uma corte ou tribunal aceitará uma acusação unilateral ou a revogação unilateral dessa lei, embora juízes de 1ª instância até possam aceitar a tese. Será que vale a pena?
22 março, 2012 at 3:38 PMmar
Não se quer revogar a Lei da Anistia. Os chamados “crimes da esquerda” (isso é uma falácia dos militares torturadores) já foram punidos e todos sabemos como. O que será julgado (e bastava ler sobre a ADPF 153 para saber) é se a Lei da Anistia vale para os crimes cometidos pelo Estado.
13 abril, 2012 at 3:38 AMabr
É uma manobra complicada tentar retirar do guarda-chuva da Lei da Anistia alguns crimes, segundo os autores, e não outros. Mesmo que se conseguisse isso, diriam que estariam prescritos, já que passariam a ser ‘crimes comuns’. Tortura com fins políticos (assegurar a manutenção do poder por um grupo) é crime político, assassinato político também – e por isso mesmo são inanistiáveis e imprescritíveis. Concordo, no entanto, com a Jacira, quando sugere haver dois tipos de sujeitos nessa questão: os que não teriam nada a perder, cujo familiar militante já morreu, e os que poderiam se ver envolvidos, por alguma manobra jurídica dos atuais acusados, em revisões dos seus atos pretéritos. É preciso cuidado sim, já que lidamos aqui com víboras peçonhentas, com recursos para pagar caros defensores. Nada é tão simples e evidente, ainda mais no Direito …