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Dia 17 — Um livro que é um prazer culpado
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Demorei tanto a chegar ao livro que é um prazer culpado que quase desisti. Aí, lembrei que teve um livro trágico com o qual me diverti muito, mesmo que isso pareça horrível para uma feminista. Me refiro ao Malleus Maleficarum — O Martelo das Feiticeiras, o livro que serviu como manual da Inquisição e que matou centenas de milhares de mulheres em fogueiras sob acusação de bruxaria na Europa.
Pode parecer estranho, mas em determinados momentos o surrealismo do livro é tanto que fica fácil esquecer que causou tanto mal. Vejam:
CAPÍTULO VII
De como as bruxas, por assim dizer, privam um homem de seu membro viril.
Já demonstramos que elas são capazes de remover o órgão masculino, não de fato arrancando-o do corpo humano, mas ocultando-o através de algum encanto, do modo como já descrevemos. Contaremos aqui alguns exemplos desses casos.
Na cidade de Ratisbon, vivia um jovem que, depois de uma briga com uma certa menina, desejando abandoná-la, ficou sem o membro. Foi-lhe, digamos, lançado algum encanto de forma que em seu corpo ele nada via ou tocava – era perfeitamente liso.
Preocupado com o que lhe ocorrera, foi a uma taberna beber vinho. Depois de lá sentado por alguns momentos, entabulou conversa com uma das mulheres da taberna e acabou contando-lhe toda a sua tristeza, explicando-lhe tudo, e mostrando a ela como seu corpo ficara. A mulher, astuta, perguntou se ele não suspeitava de ninguém que o tivesse encantado. Ele então falou-lhe da tal menina, revelando à mulher toda a história, ao que ela o aconselhou.
– Se não bastar a persuasão, é melhor que uses de alguma violência para fazê-la restaurar a tua saúde.
E assim, naquela mesma noite, o jovem ficou a postos no caminho por onde a bruxa costumava passar. Quando ela se aproximou, interpôs-se-lhe no caminho e suplicou-lhe que restituísse a saúde de seu corpo. A moça sustentou que era inocente e que nada sabia a respeito.
Ele então jogou-se em cima dela e, enlaçando-a pelo pescoço com uma toalha, avisou:
– A menos que me devolvas a minha saúde, hás de morrer nas minhas mãos.
A bruxa, impossibilitada de gritar, e com o rosto já inchado e lívido, balbuciou:
– Deixa-me ir que vou te curar.
O jovem afrouxou a toalha e a bruxa imediatamente tocou-o com a mão entre as coxas, dizendo:
– Agora tens de volta o que desejas.
O jovem contou depois, que, mesmo antes de olhar ou palpar, sentiu que o membro lhe fora restituído pelo mero toque da bruxa.
Depois de ler mais de 500 páginas de absurdos semelhantes não tem como não rir. E seria mesmo cômico se não fosse trágico. Acabei — talvez não por acaso — relacionando prazer e culpa justamente como a Inquisição, que normatizou a sexualidade da mulher no mundo ocidental cristão e a privou do direito ao prazer.
O Malleus Maleficarum é de autoria dos inquisidores dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger e foi publicado pela primeira vez na Alemanha, em 1484. Nessa edição da Rosa dos Tempos o prefácio é de Rose Marie Muraro. O li pela primeira vez aos 23 anos e ele fez parte de um grupo de estudos feministas de mulheres universitárias do qual eu participava em 1995, em Pelotas.
Baixe aqui O Martelo das Feiticeiras em pdf.
No desafio 30 livros em um mês também estão a Luciana do Eu Sou a Graúna, a Tina do Pergunte ao Pixel, a Renata do As Agruras e as Delícias de Ser, a Rita do Estrada Anil, a Marília do Mulher Alternativa, a Grazi do Opiniões e Livros, a Mayara do Mayroses, a Cláudia do Nem Tão Óbvio Assim, a Juliana do Fina Flor, o Pádua Fernandes de O Palco e o Mundo, a Renata do Chopinho Feminino, e a Júlia Schnorr do Uma Noite Catherine Suspirou Borboletas começou hoje. E tem mais a Fabiana Nascimento que posta em notas no seu perfil no Facebook. Mais alguém?
20 setembro, 2011 at 3:38 PMset
Comecei hoje 🙂
21 setembro, 2011 at 3:38 AMset
Eu quero usar pra dar aula de idade média… eu meio que pirei qdo li pq fiquei pensando no imagináiro criativo dos autores, esqueci todo o viés que cÊ coloca muito bem.. coisa de historiador doidão.
21 setembro, 2011 at 3:38 AMset
Bem-vinda ao desafio, Júlia! Já te linkei. Beijo. 🙂
21 setembro, 2011 at 3:38 AMset
“Imaginário criativo”, de fato – que Freud explica! No caso, trata-se de uma evidente fantasia de castração…
21 setembro, 2011 at 3:38 AMset
Caraca. Não imaginava q esse livro fosse assim não… eu sempre olhei pra ele nas estantes, gosto de feiticeiras e similares desde pequenininha… que comédia. Fiquei na dúvida se ia lá ler ou se desistia de vez e ficava só com sua versão…!
21 setembro, 2011 at 3:38 AMset
Renata, eu vou ficar só com a versão da Niara. Que, como sempre, conseguiu um post atraente e fora do óbvio que me é tão próprio. Admirável olhar, esse seu, Niara.
21 setembro, 2011 at 3:38 AMset
O livro não é cômico o tempo inteiro, mas é surreal do início ao fim. As divagações desses dois dominicanos sobre mulheres e sua “natural” pré-disposição e atração ao/pelo demônio é, sim, de dar gargalhadas. Lembro de termos ataques de risos de chorar nesse grupo de estudos feministas da época da universidade que cito no post. Só parávamos de rir quando nos dávamos conta de que esses absurdos eram levados a sério e que esse trecho destacado era um artigo do código penal da Inquisição. Bastava algum homem ressentido inventar uma história parecida com essa sobre alguma mulher para que ela fosse presa e condenada imediatamente. E se ela abrisse a boca para se defender e usasse o mínimo de raciocínio lógico em sua argumentação, era o que bastava para “comprovar” a suspeita de bruxaria: era estava seduzindo a todos com seu feitiço através da fala.
Mas esquecendo desses “detalhes” trágicos, o livro é uma comédia.
ps: Lu, para de jogar confete em mim! Vou acabar acreditando e ficando metida. 😛
21 setembro, 2011 at 3:38 AMset
se é pra jogar confete, vai aí …. :::::::::::::::::::::::::¨¨¨¨¨¨……….:::::::
eu tb sou fã.
🙂