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A luta pela democratização da comunicação e o caso dos blogueiros reificados

Quando ainda estava na faculdade — já era comunista, feminista e já tinha deixado muitos outros “istas” para trás –, descobri o que era reificação, um conceito marxista pós Marx utilizado por Georg Lukács em “A Consciência de Classe” e por muitos outros teóricos . Simplificando — e traduzindo –, a reificação é o processo de alienação após a tomada de consciência de classe pelo trabalhador explorado. Normalmente esse “fenômeno” atinge as categorias dos profissionais liberais que negociam individualmente seus salários e condições de trabalho e, por — isso e também por — já terem reconhecido a própria exploração (atingido a consciência de classe), se veem livres dela ou acham que já a superaram. Um dos erros mais grotescos segundo a ótica marxista, embora bastante comum. Esse foi o mote da minha monografia de conclusão da graduação.

Há bem pouco tempo atrás conversando com um amigo radialista esportivo lá de Pelotas, Régis Oliveira (ex-militante do antigo PCB), muito crítico e observador, ele me dizia que o militante de esquerda sofre de uma espécie de alienação com relação ao partido e ao seu ativismo, de modo que seu senso crítico fica comprometido naquilo que diz respeito à política partidária/sindicato/movimento (teoria e prática) e à atuação e comportamento de seus líderes. Cheguei, então, a conclusão que o fenômeno da reificação acontece também entre os militantes/ativistas da esquerda.

Após ter participado do 2º BlogProg em Brasília caí numa espécie de turbilhão maniqueísta, onde eu só poderia estar certa ou errada, ser boa ou má. Essa dicotomia entre o bem e o mal é o pior veneno para as relações humanas coletivas, porque individualmente até reconhecemos nossa humanidade e que somos todos bons e maus num só e isso não é demérito nenhum, etc, mas coletivamente a tendência é sempre forçamos a barra na disputa dos bonzinhos contra os vilões maus, dos coloridos contra os monotemáticos, dos amplos contra os bitolados. Odeio essa dicotomia e odeio ainda mais me ver jogada em seu meio e reconheço que andei colaborando com ela, mesmo que não intencionalmente no caso do Eblog versus BlogProg.

Mas depois de ser insultada e aviltada em minhas redes sociais por lideranças do BlogProg — que se prestaram ao triste papel de cumprir o ritual da grande imprensa de desqualificar a pessoa que os critica na tentativa de desmerecer a crítica feita e assim não precisar respondê-la –, tentei analisar de novo a mesma situação com a minha melhor e mais límpida lente, a do marxismo. (Aqui abro um parênteses para registrar que uma crítica feita em particular de forma solidária e generosa pelo blogueiro Marcelo Augusto Damico, logo após o lançamento do manifesto do Eblog, foi o fator que desencadeou essa minha re-análise)

De repente alguns blogueiros defensores costumazes e incansáveis da Democratização da Comunicação acharam que do alto do acúmulo de sua imensa e valorosa luta (e não há nenhum sentido irônico nisso, eu realmente respeito e valorizo sua luta e empenho), poderiam se dar ao luxo de não aderir à blogagem coletiva convocada pelo Eblog ao final do nosso manifesto. Oras (aqui faço uso de ironia), por que blogueiros já tão famosos e reconhecidos nesse campo de luta dariam respaldo e ‘pelota’ para um grupinho “divisionista”, de “esquerdistas puros” e tão oposicionista? Foi quando fiz essa pergunta (ou outra bem parecida com o mesmo sentido e tom irônico) no tuíter que percebi que esses blogueiros vivem o fenômeno da reificação. Esqueceram o inimigo maior, o sentido real da luta e julgaram não ser preciso fazer a “concessão” de dividir sua luta conosco. Como se fosse mesmo um campinho de futebol do qual eles se apossaram e para onde costumam levar grande público para assistir os jogos dos quais participam. Os blogprog não compareceram ao “jogo”/blogagem coletiva pela #DemoCom (com exceção da Conceição Oliveira, Beto Mafra — que inclusive fez o banner que ilustra este post — e Daniel Dantas). A esvaziaram propositalmente, provavelmente, na expectativa de nos impingir uma flagorosa derrota. Pois, bem. Fomos todos derrotados e quem sai fortalecido é quem não precisa de reforço ou vitórias.

O blogueiro Eduardo Guimarães, do Movimento dos Sem-Mídia, na mesa com o ministro das Comunicações Paulo Bernardo no 2º BlogProg, o questionou duramente sobre quando os Marinho terão de se desfazer de parte do seu patrimônio ao lembrar do caso da Argentina, onde o grupo Clarin estaria sendo obrigado pela Ley dos Médios a se desafazer de parte de seu patrimônio para descaracterizar monopólio/oligopólio. A diferença fundamental entre Brasil e Argentina é que nossos vizinhos têm um governo forte e atuante sobre o Estado e sociedade, que não é refém dos grandes grupos empresariais que ajudaram a financiar campanhas eleitorais e agora cobram o retorno desse apoio como no Brasil. Tanto assim que a Argentina já julgou e condenou mais de 300 militares e torturadores sem que isso causasse nenhuma convulsão política ou social.

O Brasil é um caso único no mundo inteiro na relação de poder dos meios de comunicação com a sociedade e governos (assista o documentário Além do Cidadão Kane, da BBC-Londres de 1993). Os grupos que hoje dominam a comunicação (e detém em suas mãos o comando do país — e não sejamos ingênuos em dizer que o candidato deles era José Serra e foi derrotado, porque hoje sabemos que tanto faz como tanto fez quem venceu as eleições de 2010) ou surgiram e/ou se fortaleceram após o golpe militar. As empresas que financiaram o golpe e deram manutenção financeira à tortura — e por consequência ajudaram a financiar os golpes militares dos países do Cone Sul e a Operação Condor — são as mesmas empresas que hoje financiam TODAS as campanhas eleitorais de TODOS (ou quase todos) os partidos para garantir que a verdade sobre suas relações com o golpe e a tortura nunca venham a público. Duvidam? Basta pesquisar as doações de campanha de qualquer candidato no site do TSE, é público, e comparar com o depoimento que faz Ivan Seixas ao denunciar alguns dos financiadores do golpe militar.

Achar que um questionamento mais duro ao ministro num evento promovido por si e seus parceiros é mais importante e eficaz do que somar esforços numa blogagem coletiva, que poderia ter chamado a atenção de todo o mundo virtual brasileiro para a luta pela democratização da comunicação, é um erro tão grotesco quanto o do trabalhador autônomo que pensa já ter superado sozinho a opressão de classe. Está achando o paralelo da reificação esdrúxulo? Então olhe quem é o grande vencedor no caso do trabalhador autônomo e no caso dos blogueiros boicotantes da #DemoCom.

Abusando cinicamente da dicotomia entre o bem e o mal, uso os versos do Belchior de uma música feita durante a ditadura que ainda faz sentido: “eles venceram e o sinal está fechado pra nós que somos jovens; para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua é que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz“.

Eles venceram, e para que usamos nossos braços, lábios e vozes?

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NOTA: Se mais algum blogprog participou da blogagem coletiva pela #DemoCom e eu não citei, me avisem que retifico imediatamente.

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Podem me chamar de barraqueira, não vou contemporizar

Sobre as feministas más e as de ‘bom termo’ e a tentativa de nos dividir

Pensei muito antes de escrever sobre essa polêmica das ‘feminazis’, mas não acho correto me omitir vendo outras feministas de posicionamento muito semelhante ao meu sendo atacadas covardemente por blogueiros machistas que fingem apoiar a nossa luta. Pensei, não ponderei e vai na forma de desabafo mesmo. No final tem a lista de textos já publicados sobre o assunto.

Quando me formei jornalista, minha monografia de conclusão da graduação versava sobre opressão de classe sofrida pelos jornalistas. Existe no marxismo (vou simplificar para que qualquer um/a entenda) a citação de um fenômeno chamado de reificação, que trata da opressão de classe sofrida e negada/ignorada por determinadas categorias que supostamente já tenham atingido a consciência de classe. O fenômeno da reificação é mais facilmente observado entre profissionais liberais (advogados, médicos, jornalistas, músicos, etc.), que por não serem assalariados e/ou receberem remuneração um pouco mais condizente com o esforço diário empregado no trabalho, se acham livres da exploração, mais valia, etc., e por consequência, livres da opressão de classe.

Mas por que estou falando em reificação e opressão de classe quando o assunto é a polêmica com as feministas? Simples. A reificação pode ser observada também na consciência de gênero entre as feministas. Algumas de nós já militam há tanto tempo e estão tão escoladas no machismo e principalmente no machismo da esquerda (muito mais cruel e perverso), que se acham livres da opressão de gênero. Se acostumaram a ‘dar pinotes’ para não se deixar oprimir que já não percebem mais quando veem um cabresto (desculpem-me, mas é esse mesmo o termo) adornado por flores.

A polêmica sobre as ‘feminazis’ – termo que se refere à mulheres sexistas que pensam em “exterminar” os homens (oi?) – começou com a publicação de um comentário pelo Luis Nassif em seu portal. Ele disse que publicou por desatenção, mas não apenas não excluiu o comentário como o transformou em post, debochou das feministas que reclamaram, ofendeu e quando finalmente foi pedir desculpas, reforçou seu ataque. Não tenho dúvidas sobre o entendimento do Nassif quanto ao termo ‘feminazi’, já que ao se desculpar ele cita “feministas de bom termo” (criando clara e intencionalmente um cisão) como seu oposto. Ou seja, para o Nassif e para todos aqueles que estão se sentindo incomodados com essa discussão, ‘feminazi’ virou sinônimo de feminista radical.

Os chamados blogueiros progressistas estavam todos inquietos, vendo Nassif ser criticado implacavelmente por todas as feministas e muitos outros homens solidários à nossa luta. Tentavam contemporizar, mas não conseguiam defendê-lo abertamente e Nassif, do alto de sua arrogância, não admitia o erro e nem se desculpava. Eis que surge o Idelber Avelar escrevendo sobre a busca do feminismo dócil e dá aos amigos de Nassif os argumentos para defendê-lo. Imediatamente surge a cavalaria de Nassif capitaneada por Rodrigo Vianna e Eduardo Guimarães atacando Idelber e mudando o foco da polêmica para o encontro dos blogueiros progressistas, e clamando pela re-união de todos deixando para lá questões menores como essa das feministas (interpretação muito radical dessa feminista tresloucada aqui). Nassif – o magnânimo – imediatamente liga para alguém mandando avisar via tuíter que ainda essa semana chamará a Marcha Mundial de Mulheres (feministas de bom termo?) para conversar e abrirá espaço em seu portal (esse é o cabresto adornado por flores).

A tática de guerra mais antiga do mundo: dividir para conquistar. Isola-se as feministas radicais e chama-se as de bom termo oferecendo generosamente um espaço numa vitrina. As feministas de verdade, as que fazem o certo apoiando os valorosos homens, blogueiros progressistas, guerreiros e cavaleiros da liberdade serão ouvidas e respeitadas. As barraqueiras histéricas e insensatas, bruxas más e divicionistas da esquerda como a Lola Aronovich, Cynthia Semíramis, eu e mais meia dúzia ficaremos berrando e esperneando até cansarmos e em breve alguém nos dirá: Chega de “mimimi”. Não acho correto o que estão fazendo e fico muito surpresa em ver mulheres contemporizando e defendendo esses absurdos. A pergunta que não quer calar: A quem interessa dividir as feministas?

Podem me chamar de feminazi, barraqueira, divisionista e mais o que for. Não vou me calar diante desses machos retrógrados (progressista é um apelido de mau gosto) e blogueiros tubarões. Se dizem imprensa alternativa, mas se comportam como a grande imprensa.  Espero sinceramente que as feministas de ‘bom termo’ – assim chamadas por Nassif  em seu pedido de desculpas (sic) – tenham claro tudo isso na hora em que forem chamadas à ‘vitrina do bom senso’. E lembrem-se que nenhum desses progressistas deu espaço à campanha pelo fim da violência contra mulher, com exceção do Azenha (embora a postagem tenha sido da Conceição Oliveira).

Meu nome é resistência, leia-se mulher!

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Nota: Desculpem-me por tantos chavões, mas ao afirmar posições eles são inevitáveis.

Nota 2: O foco principal do assunto continua sendo o machismo finalmente aflorado de um dos maiores blogueiros do país.

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Segue a lista de alguns dos principais textos publicados na blogosfera sobre o assunto:

Feminazi: ignorância a serviço do conservadorismo – Cynthia Semíramis

Como falar bobagens e ser publicado num blog famoso – Lola Aronovich

Progressistas, progressistas,mulheres a parte – Marília Moschkovich

A agressividade como ferramenta de auto-afirmação – Lola Aronovich

“Socorro! Não sou machista, mas as feminazis mal-comidas estão me patrulhando” – Alex Castro

A quem interessa comparar feministas a nazistas? – Srta. Bia

Blogosfera progressista, feminismo e polêmicas – Conceição Oliveira

A nova blogosfera e o episódio com as feministas – Luis Nassif

Nassif pede desculpas às feministas de bom nível – Lola Aronovich

A busca incansável por um feminismo dócil, ou, não é de você que devemos falar – Idelber Avelar

Nassif e a esquerda que a direita gosta – Rodrigo Vianna

A quem interessa desagregar a blogosfera – Eduardo Guimarães

Algumas reflexões sobre a “blogosfera progressista” – Hugo Albuquerque

Sobre o debate Nassif, feminazis, Idelber e blogs progressistas – Rogério Tomaz Jr.

Feminismo não é partido! – Danilo R. Marques

Pelo direito de ser braba – Bete Davis

Discussão sobre feminismo: a esquerda e suas divergências – Cris Rodrigues

Os Blogueiros Progressistas, teorias da conspiração e Feminazis: Da “docilidade” à estupidez – Raphael Tsavkko

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Marx: naturalismo e história

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Marcel Conche
Le Nouvel Observateur
na Agência Carta Maior
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O que pode ser preservado do marxismo hoje? Marx é realmente um filósofo? Em que sentido ele nos libertou de Hegel e nos aproximou de uma posição naturalista? Por que, para Marx, não há um sentido na história? Marcel Conche, professor emérito na Sorbonne, nos convida a entender a posição do Marx filósofo, não a do historiador nem a do economista. E o modo como Marx lê a tradição filosófica que lhe era contemporânea fortemente marcada pelo legado hegeliano, retomando nos pré-socráticos as fontes teóricas para a sua crítica da finalidade na história.

Em outubro de 2003, a revista francesa Le Nouvel Observateur dedicou um número especial à obra de Karl Marx. Cinco anos antes da hecatombe econômica mundial de 2008, a publicação perguntava: Marx pode ser o pensador do terceiro milênio? Como escapar da mercantilização do mundo? Com a eclosão da crise que abalou o sistema financeiro internacional, Marx “voltou à moda”. Um retorno positivo, pois traz de volta ao cenário intelectual um gigante do pensamento humano, mas que precisa enfrentar uma série de clichês, mitos e deformações teóricas que se construíram em torno e invariavelmente contra as idéias do autor de “O Capital”. Um dos méritos da publicação francesa é apontar algumas idéias e metodologias investigativas de Marx que podem nos ajudar a entender (e transformar) o mundo neste início de século XXI.

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Gramsci e o Brasil

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Especialista no pensamento gramsciano, fala sobre a recepção de Gramsci no Brasil

Coutinho: "Gramsci é o maior teórico marxista da política"

Carlos Nelson Coutinho é reconhecido internacionalmente como um dos maiores especialistas no pensamento de Gramsci. Responsável pela coordenação e edição da obra do autor italiano no Brasil, Coutinho é professor na UFRJ e autor de livros fundamentais para os estudos de teoria política no país, como A Democracia como Valor Universal e Outros Ensaios (Salamandra) e Gramsci, um Estudo sobre Seu Pensamento Político (Civilização Brasileira). Nesta entrevista à CULT, enfatiza a centralidade da política no pensamento de Gramsci e fala sobre sua recepção no Brasil.

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CULT – Por que o pensamento de Gramsci encontrou uma acolhida tão calorosa entre pesquisadores brasileiros?
Carlos Nelson Coutinho – É evidente que isso depende, antes de mais nada, da extraordinária fecundidade de seu pensamento: são poucas as áreas das chamadas “ciências humanas” para as quais Gramsci não tenha contribuído. Mas a principal razão dessa acolhida favorável é o fato de que muitos dos conceitos de Gramsci nos ajudam a pensar mais profundamente a especificidade brasileira. Penso nos conceitos de “Estado ampliado” e de “guerra de posição” como centro estratégico da luta pelo socialismo. Gramsci concebia esses conceitos como imprescindíveis para compreender os processos sociais do que ele chamou de “Ocidente”, ou seja, de sociedades mais complexas, onde existe uma relação equilibrada entre Estado em sentido estrito e sociedade civil.
Ora, o Brasil tornou-se progressivamente, nas últimas décadas, um país de tipo ocidental, tal como Gramsci o compreende. Não é casual que a segunda e mais duradoura incursão de Gramsci no Brasil, iniciada no fim dos anos 1970, tenha se dado em estreita combinação com uma autocrítica da esquerda que, naquele momento, era feita não só pelos que haviam aderido à luta armada como forma de combate à ditadura, mas também pelos que, como o Partido Comunista Brasilero (PCB), supunham que o Brasil era ainda um país semifeudal, atrasado, carente de uma revolução democrático-burguesa ou de libertação nacional. Gramsci  ajudou-nos e  ajuda-nos a repensar a estratégia socialista adequada ao país “ocidental” em que o Brasil se transformou.
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CULT – Que outros conceitos do autor seriam úteis para pensar nossa realidade?
Coutinho – O conceito de “revolução passiva”, ou seja, de um processo de transformação que se dá pelo alto, com exclusão do protagonismo das classes subalternas, vale como uma luva para momentos essenciais de nossa formação histórica, da Independência à mal chamada “Nova República”. Cabe também lembrar o modo pelo qual Gramsci tratava das disparidades regionais na Itália, do que ele chamava de “a questão meridional”. Para ele, não se tratava de duas Itálias, já que o atraso do sul era funcional ao desenvolvimento do norte industrial, tal como ocorre em nosso país, invertidas as posições geográficas. Finalmente, quem estudou a história de nossa intelectualidade se surpreende com a pertinência para nós do conceito gramsciano de “nacional-popular”: tal como na Itália, também no Brasil os intelectuais caracterizaram-se quase sempre, com honrosas exceções, por se manterem distantes do povo-nação, gerando assim uma cultura abstratamente cosmopolita e “ornamental”. Certamente há ainda outros conceitos gramscianos que podem nos interessar diretamente.
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Antonio Gramsci

CULT – Quais são os principais desafios para o desenvolvimento dos estudos gramscianos em nosso país? Que temas e abordagens deveriam ser desenvolvidos?
Coutinho – Antes de mais nada, é preciso “limpar” Gramsci das muitas deformações liberais que lhe foram anexadas por alguns dos seus leitores brasileiros. Gramsci era comunista, um comunista “crítico”, que já denunciava a “estatolatria” imperante no modelo stalinista – mas era e permaneceu até sua morte um defensor da “sociedade regulada”, o belo pseudônimo que inventou para o comunismo. Sua proposta de revolução por meio da “guerra de posições” não é uma proposta de melhorar o capitalismo, mas de superá-lo por meio da criação de uma nova e inédita ordem social. Seu conceito de “sociedade civil” nada tem a ver com o tal “terceiro setor”, situado para além do Estado e do mercado e considerado o reino do bem em oposição ao mal representado pelo Estado. Ao contrário, na medida em que é atravessada por relações de poder, a sociedade civil gramsciana é um momento do Estado, uma importante arena da luta de classes. Nesse sentido, parece-me muito importante, hoje, não só desenvolver pesquisas específicas que apliquem categorias de Gramsci à nossa
realidade, mas também empreender estudos que estabeleçam de modo rigoroso o que ele realmente disse. Só assim será possível resgatar a dimensão revolucionária de seu complexo e riquíssimo pensamento.
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CULT – Ao longo dos últimos 40 anos, houve alterações temáticas ou teóricas significativas na recepção dessa obra no Brasil?
Coutinho – Em sua primeira incursão no Brasil, nos anos 1960, Gramsci foi apresentado por seus editores e tradutores sobretudo como um grande filósofo e um brilhante crítico da cultura. Esses primeiros editores eram jovens intelectuais comunistas, que respeitaram certa divisão do trabalho pela qual eles tinham plena autonomia para definir a política cultural do PCB, mas reconheciam o “direito” da direção de formular a linha política geral. É claro que isso empobreceu a leitura de Gramsci. Só mais tarde foi reconhecido o fato de que o centro da reflexão de Gramsci – ao qual se subordinam suas muitas observações sobre filosofia, literatura etc. – é a política. Gramsci é o maior teórico marxista da política. Suas principais contribuições para a renovação do marxismo residem precisamente na nova formulação que ele deu às teorias marxistas do Estado e da revolução. Não se trata, é claro, de subestimar o valor das reflexões “filosóficas”, “sociológicas”, “pedagógicas” etc. de Gramsci, mas de compreendê-las no quadro de uma totalidade que tem na política o seu eixo articulador. Os mais importantes trabalhos sobre Gramsci publicados no Brasil nos últimos 20 ou 30 anos têm consciência dessa centralidade da política em sua obra.

(Alvaro Bianchi)